TAM 3054 0 4449

As luzes de emergência se ascendem e um alerta sonoro desperta Diogo dos Campos. Pelo auto-falante, o comandante anuncia que serão iniciados os procedimentos de aterrissagem. Complementa as informações sobre o tempo, faz cinco graus, o céu está encoberto e chove.

É possível escutar algumas risadas contidas. Desembarcar no aeroporto Afonso Pena costuma ser assim. Os curitibanos se divertem quando a cidade não apresenta surpresas climáticas. Sempre chove em Curitiba. Os nativos tratam o clima como se fosse uma recepção de boas vindas. Para eles, porque retornam à casa, ou para os visitantes, que recebem esse pouco convidativo cartão de visitas.

Aperta os cintos e tenta se firmar no assento. Morre de medo de voar. Mas mais do que nada, morre de medo de aterrissar. Não se esquece daquela tragédia ocorrida em Congonhas no ano de 1998. Até hoje as vezes tem seu sono interrompido por uma manobra equivocada de um avião que cruza a Avenida Washington Luís antes de se chocar com um edifício qualquer.

Tem sempre na carteira uma fotografia com seu pai, passageiro no voo TAM 3054 de 13 de fevereiro de 1998. Nessa foto, Diogo tem três anos de idade. Não muito mais do que três, de qualquer maneira. Tem pavor ao mar, porém aparece vestindo uma sunga e toca a água, que mal chega à altura de seus calcanhares. Seu pai está ajoelhado a seu lado, orgulhoso de ver como Diogo supera seus mais profundos medos.

Cada vez que passa pela experiência de uma aterrissagem, tenta se lembrar do momento imediatamente anterior aquela foto. Estava escandalizado porque seus pais queriam levá-lo à praia. Diante da imensidão do mar, pensava que seria levado pelas ondas. Pensa novamente nas risadas que escuta e se pergunta se elas não são para ele. Se, por acaso, aquelas pessoas perceberam que apesar do corpo de adulto e dos livros publicados, ele não continua sendo apenas aquela criança assustada. Nunca é o caso. Diogo se lamenta.

Ao desembarcar passa direto pelas esteiras de bagagens enquanto pede um Uber com destino ao Shopping Pátio Batel. Senta-se no banco dianteiro mas rapidamente coloca seus fones de ouvido, dando a entender a Beatriz que não está particularmente interessado em conversar.

Quando chegam ao centro o trânsito se torna mais lento. Próximo à esquina entre a Mariano Torres com a Marechal Deodoro da Fonseca, avista Gustavo Lopes dos Santos. Pergunta à Beatriz se ela pode parar ali um instante, pois precisa dar um recado a Gustavo.

Beatriz parece surpresa pela familiaridade com que ele utiliza aquele nome. Encosta o carro e assiste seu passageiro descer e caminhar até um morador de rua. Gustavo se levanta e ambos se saúdam com um abraço. Trocam algumas palavras com gestos que indicam estarem marcando um compromisso. Despedem-se e Diogo retorna ao carro.

Antes que recoloque seus fones, a voz de Beatriz o interrompe.

-Diogo, sei que não é da minha conta. Mas você conhece aquele homem?

-Você não sabe quem ele é?

-Não, deveria?

-Que desgraçado! – ri Diogo – Aquele é o homem mais poderoso do Estado.

-Hmmm, você quer dizer no sentido de um Ibsen?

Diogo se surpreende com a referência. Beatriz percebe e conta que fora professora de literatura na Universidade Federal.

-Isso foi antes das reformas privatizantes de 2019. Tive que abandonar aquele trabalho porque, com a emenda constitucional que congelou os gastos públicos, as mudanças nas regras de financiamento da previdência e o aumento da inflação, o salário de professora não permitia pagar todas as contas. Daí foi melhor ser Uber mesmo. Inclusive, adorei seu livro Davi de Gotiasan. Uma mente transcendente viajando pelo mundo em um corpo que vai da juventude à velhice.

-Curioso você mencionar esse livro. Gustavo me ajudou a escrevê-lo.

-O mendigo?

-Isso! O mendigo. Mas ele não é o homem mais poderoso do Estado porque é o homem mais solitário. Hahaha. Talvez seja o mais sozinho, mas isso é por escolha própria. Suas formas de influenciar o mundo não decorrem disso.

-Pode explicar melhor?

-Nós nos conhecemos em 2016. Ele vivia debaixo de uma marquise, na esquina da Alameda Prudente de Moraes com a Vicente Machado. Poucas vezes senti tanto medo de uma pessoa, quanto quando ele me pediu esmola. Eu respondi não dava dinheiro de graça, e que informação valia mais do que todo o dinheiro do mundo.

-Ele não gostou da resposta?

-É uma história meio longa. Primeiro tive que conter a raiva do cara. Eventualmente ele me contou que anos antes, um senhor apareceu com o mesmo papinho mole, de que daria uma informação em vez de dinheiro. Porque era importante ensinar a pescar, e não dar o peixe. O negócio é que o tal senhor mostrou um vídeo. Devia ser de autoajuda, ou dos tal coaches, que estavam na moda por aquela época. Foi um período meio deprê. O cara do vídeo falava que o negócio era ir pro Rio de Janeiro, comprar água na estação central, onde vendem por um preço menor, e vender em Copacabana, onde se paga um preço mais alto. E foi isso. Com toda essa bagagem o Gustavo, que na época era só um mendigo mesmo, começou a especular o preço da água. Chegou uma hora que o pessoal da distribuidora entendeu a malandragem dele. Fizeram um contratinho. Coisa profissional. Ele se obrigou a comprar 50 garrafas de água por dia. Precisou só de uma semana de tempo ruim pra ele quebrar.

-Por isso ele quis te matar quando você apareceu com essa história da informação.

-Isso. Tive que explicar pra ele que o que eu queria era trocar o meu dinheiro por uma informação, e não dar a ele uma informação. Perguntei como ele se chamava e tenho que confessar a você. Nunca vi um nome ser pronunciado com tanto orgulho. Não sei quantas vezes ele disse seu nome completo, mas pareceu querer aproveitar cada sílaba que compunha o seu ser. Em troca eu dei uma moeda, e falei pra ele guardar melhor seu nome. Afinal, nunca se sabe quando alguém quer te prejudicar. Sempre mantivemos contato. Depois disso ele começou a fazer disso um negócio. O Gustavo não é bobo. Não tem político paranaense que não tenha dado dinheiro pra ele, mesmo sem saber quem ele é. Esses caras fazem um monte de merda na vida privada. Depois pagam mundos e fundos pra manter a honra da família.

-Isso tem algo a ver com Santiago?

-Na verdade não. É só a história de como a gente se conheceu e depois como ele ganhou a vida. A história de Santiago é bem mais simples. Gustavo trabalhava guardando carros na frente daquela escola de francês. Batia papo com os estudantes. Te falei que ele não era bobo. Um dia ele me contou que em francês a palavra futur é só um tempo verbal. Ele não conseguiu me explicar muito bem, mas os incertos eventos que compõe a parte da nossa vida que ainda não conhecemos são chamados devenir. Nesse dia eu deixei pra ele uns 50 reais e comecei a escrever Davi de Gotiasan.

-E eu, que pensei que Santiago fosse teu alter ego. Imaginava que você fosse uma criancinha num corpo de escritor.

-Haha, acho que é um fenômeno meio comum. Confundir personagem com autor, não é, professora?

-Pois é.

-Bom, acho que eu desço aqui. Muito obrigado. Tenha uma boa tarde.

-Você também.

Diogo desce do carro e caminha em direção ao shopping, onde dará uma pequena conferência sobre seu novo livro, supostamente. Beatriz dá a partida no carro e se dirige ao bosque Gomm, onde irá esperar até que chame outro cliente, supostamente. Afinal, nunca se sabe.

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Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Vida comum parte 1 0 5018

Vida comum parte 1

Véspera de feriado, antes da meia-noite e eu já com meia garrafa de conhaque na mente. Curtia me derreter no gole, de dose, de lata, de garrafa, de todo jeito. No feriado rolou um churrascão que nem lembro se comi, dropei umas caipiras antes de acender o fogo e fiquei mais preocupado com a temperatura das garrafas que da carne. Sábado a ressaca com a mão pesada, tava batendo forte, contra-ataquei com uns latão, encostado nos fundos do posto com a rapeize, só flagrando os doidinho tirando uns racha de Parati, Chevette e Gol Chaleira. Domingo rolou rave na região metropolitana, no meio do mato, não virava ir de bonde, botei uma gasolina na Bizz e meti o pé; duas carteiras de Minister depois já tinha descido whisky com energético, vodka com suco, vários ampola, um doce e umas água colorida que os parceiro botaram, sei lá qual fita, puta gosto de remédio. Bati a nave antes da hora, cheguei em Grayskull sem nem aproveitar a viagem, ensaiava falar e não saia voz, tava tenso, me mordendo, fiquei nervoso: deu bad. Tentei endireitar a caminhada tomando umas águas, mas não rolou, a conta não batia, os dentes rangendo, coração agitado querendo se mudar do peito. Precisava voltar pra minha goma, tomar um banho, talvez dois, sei lá, só precisava vazar, montei na moto e fui. Tava com dois IPVA atrasados, cabreiro de cair numa blitz, e se soprasse um bafômetro explodia a máquina – certeza. Queria chegar logo, entrei no modo Valentino Rossi e corri a milhão, como se fosse fuga. Foi aí que deu ruim no piloto automático, se pá que dormi em cima do jato, lembro só de uns clarão, uns flash. Vi o céu por baixo, deitado no asfalto, sei lá qual fita, tudo nublado, que dia bosta. Me liguei e já tava todo remendado no hospital, numa sala com umas vinte cabeça, todo mundo fudido, uns mais outros menos. Eu? Era cabeça de chave do grupo dos desgraçados: com a lata do frankstein, olho roxo, cara inchada, nariz quebrado, uns ponto na testa. Trinquei uma costela e quebrei outras duas, a clavícula rachou e a mão tava na carne viva. O médico foi desenrolando essa lista aí e eu aceitando na moral, os pensamentos embaçados, cheio de analgésico, todo bagunçado de dor. Aí teve uma mão que ele deu uma pausa, ficou mais bolado e mandou A real: disse que eu sofri um choque cabuloso no quadril, perdi mais de 80% do fígado, que num tinha como dizer o tamanho real do estrago, mais uma fita era certa, nunca mais ia poder beber, se tomar meia lata que seja, posso encomendar o caixão. Acordei umas três vezes crente que tava tendo um pesadelo, foquei umas horas que tava numa brisa errada de doce. Mas não. A vida é uma viagem desgraçada.