postado por Rafaé.
Ao pegar o livro que jamais lhe devolvi percebo um fio de cabelo seu, como um marcador de páginas. Um fio de cabelo seu, encantado e vermelho. À luz fraca do quarto, seu cabelo lembrava sangue no travesseiro.
Memórias que insistem em me sabotar…
Ainda hesitando, entre a curiosidade e o temor de uma lembrança sua, vou até a página marcada. Das infinitas linhas que jamais sossegam e insistem em nos levar a outros mundos, um pequeno parágrafo sublinhado a lápis, de maneira trêmula, como todas as linhas que você faz em livros. Uma mistura de desleixo com ansiedade. Subitamente o fechei. Em seguida optei pela alegria, que é sempre agradável.
Deixei o livro sobre o mesmo canto em que repousou nos últimos onze meses e alguns dias. Mas ele já não era mais passivo como foi durante todo esse tempo em que não interagimos. Agora era capaz de me hipnotizar, e não hesitou quanto a isso. Ele sabia que eu estava cedendo, que logo viria, o abriria e estaria totalmente à deriva naquelas linhas; seria sugado pelo sublinhado.
Numa tentativa de provar ser mais forte que um maço de papel branco escrito com tinta preta, elaborei uma estratégia simples e eficaz: retiraria aquele fio e daria a ele uma outra liberdade. Assim como ele teve a de abandonar sua vida e ir repousar ali naquele livro, agora teria um novo mundo de destinos possíveis.
Eu sei que na prática as coisas não são tão lógicas assim. Às vezes um punhado de palavras – mesmo as escritas – define o rumo da vida de um homem, mesmo com todo o livre arbítrio que Deus tenha lhe dado. Se bem que quando Deus nos deu todas as regalias não existiam as letras. Vai ver palavras escritas são as mais fortes. Nem Ele imaginou um livre arbítrio tão submisso.
Outra opção seria torturar aquele fio ousado, como fazia o primo de um amigo meu, amarrando-o ao meio e mandando embora pelo ralo da pia do banheiro, pelo simples prazer de procurá-lo no encanamento do prédio. Se bem que isso me deixaria, de certa forma, ainda submisso a este fio encantado.
Aquele fio de cabelo não havia simplesmente ido parar ali, viajado ao léu e ao acaso vindo parar nesta página. Ele sinaliza por onde você passou. Veio até ali com você e, provavelmente sem recusa, cedeu ao encanto das linhas hipnotizantes. Assim como você, que se viu seduzida a sublinhá-las: “A vontade de não ser Nada se confunde com a de ser Tudo. É preciso aceitar ser finito: estar aqui e em nenhum outro lugar, fazer isto e não outra coisa, agora e não sempre ou nunca; ter apenas esta vida”*.
É claro que eu não resisti. Quem resistiria a estas linhas? Nem eu, nem você, nem o tão poderoso e sedutor fio de cabelo; que deixou de simular sangue para viver aqui, intimamente com estas linhas tão sinceras, tão maiores que todas as nossas vontades.
De todos os mundos possíveis, estou aqui. Sou parte destas linhas. Iria de encontro à morte vivendo cada detalhe possível deste universo pleno, sem me preocupar com os demais. Enrolado neste fio vermelho, transitamos no universo cotidiano. Somos parte de um infinito-caleidoscópio-eternamente-em-movimento.
Envolto nestas linhas percebo que minhas certezas eram exatamente sobre o que nunca havia percebido. A liberdade é leve e vazia, como um caminho em que só se vai, em qualquer direção, onde jamais se retorna a um mesmo lugar; com um horizonte atento, que sempre dará um passo exatamente do tamanho do seu.
* trecho retirado do livro Carta a D., de André Gorz.