por Rafael.
A vida de Aníbal era interessante como a de todos nós, preenchida com situações extraordinárias e irrelevantes diariamente. Todos estes momentos eram tratados da mesma maneira por ele.
Os dias de sua vida eram burocraticamente cumpridos, como executados. Orgulhava-se se sua eficácia no trabalho. Poderia passar horas falando de suas superações, dos dias difíceis que venceu, pois a vida é assim, sofrida mesmo, e não é à toa que vencedor rima com dor (seu bordão favorito na firma).
Mas não passa horas falando, sequer um minuto, pois não há público para isso.
Aníbal cumpre suas tarefas sozinho, dia a dia, das seis e vinte da manhã, quando acorda sozinho, e volta pra cama, próximo à meia noite, sozinho.
A solidão combina mais com Aníbal do que a jaqueta herdada de seu pai, que usa nos dias de frio. Grande demais para ele e gasta, dá a Aníbal uma fisionomia apática, quase doente. O inverno desfavorece Aníbal.
E foi justamente no dia mais frio deste ano (31 de julho, uma terça-feira) que Aníbal decidiu dar voz ao que lhe consumia há tempos. Possuía um amor, daqueles que não revelamos sequer ao papel, com medo de que nos descubram.
Era Ana, a esposa de seu chefe, por quem ele cultivava um tipo de amor que nos machuca, pois o mantemos no escuro e jamais somos (e sabemos disso, o pior é que sabemos) correspondidos. Mas isso chega a ser confortável, um alívio, pois sentimos medo de que nos amem.
Naquela noite, seu chefe serviria um jantar em seu apartamento, para os cinco funcionários da firma, em comemoração a algum número que interessaria mais a ele do que a estas linhas.
No cardápio, sopas e vinhos. Nada mais eficiente para o dia mais frio do ano.
Desde a chegada, Aníbal evitava os olhos de Ana, com medo de revelar algo inconveniente para o momento. Mas olhava seus pés. Apesar do frio, Ana calçava um par de sandálias simples, deixando à mostra a graciosidade de seus pés. Calçava 34, ele já descobrira.
Após rasparem as panelas na mesa, sentaram-se nos sofás da sala para darem conta dos vinhos.
As conversas iam e vinham com poucas participações de Aníbal, que só pensava no que trazia no bolso, e olhava aqueles pés com tanta afeição que já se sentia correspondido por eles.
Ana estava ao lado do marido. Descalçou-se das sandálias e ergueu os pés no sofá, dobrando os joelhos, feito criança. Eram dedos branquíssimos. As unhas rosadas, impecáveis, sem esmalte. Aníbal não ouvia as vozes ao seu redor. Sentia que aqueles pés eram parte de si.
Talvez por causa do vinho, talvez pelo que os pés lhe despertavam, suas mãos suavam, mas sequer percebia.
De tempo em tempo, desviava os olhos, passando por todos, em olhadas burocráticas e voltava a se entregar àqueles pés. Os pés dignos de seu amor clandestino.
Aníbal já não suportava mais a situação de estar ali e não poder se atirar aos pés que personificaram tudo o que sente. E com a segurança dos que sabem exatamente o que fazer para atingirem suas vidas, levantou-se e anunciou: “Estou indo embora”.
Como bom anfitrião, o chefe falou que era cedo, Aníbal respondeu com alguns poréns, despediu-se e deixou o apartamento.
Já na rua, fechou a jaqueta até o pescoço, reforçando a aparência de doente, foi até a esquina e olhou a janela do segundo andar, buscando uma última imagem de Ana, em vão. As cortinas estavam fechadas, revelando apenas uma penumbra, onde se viam algumas cabeças que se movimentavam como estivessem felizes.
Do bolso, tirou o pedaço de papel que trouxera de casa, para entregar a Ana. O suor de sua mão no bolso havia umedecido e borrado um pouco da letra verde que declarava:
“Dê um beijo de boa noite no seu marido, derrube seu castelo de cartas, que já derrubei o meu. Não importa onde isso vai acabar, pois estaremos juntos. Nós. Eu e você. Dois, jamais um.”
O trecho era da música que Aníbal ouvia diariamente, como fossem as palavras que trariam Ana para sua vida.
Aníbal jamais havia se sentido tão só. Amassou o pedaço de papel e o engoliu, como garantia de que jamais descobririam aquele seu amor.
Com uma expressão ainda mais doente, caminhou até sua casa, onde pendurou a jaqueta ao lado da cama em que deitou, sozinho.