Terça-feira 2 956

– Oh, então. Nem ia te falar.

– O quê? Diz aí.

– Vi o teu marido no Tinder.

Mayara e Andressa se encontraram para um happy hour perto da Praça Osório, em Curitiba. Não se viam há alguns meses, e jogaram conversa fora enquanto bebiam chopp. Cada qual havia tomado uma dose de uísque no começo da noite, e naquela altura, às 21h15, a embriaguez de ambas tinha começado a se manifestar.Mayara sentia saudade da amiga. O contrário não acontecia. Andressa encarava aquela casualidade como um passatempo antes de voltar para casa e dormir tranquila, mas claro que aquele tipo de informação mudava tudo. Questionou-se sobre o como e por que Mateus, seu esposo, estava no Tinder? E a amiga, então? Isso não era só mais um daqueles modismos da internet? Coisa de menininha desorientada? Molecagem passageira? A onda atual antes da próxima chegar daqui a dois meses? Pelo visto não, mas talvez sim. Ela virou um copo meio cheio enquanto pensava em alguma resposta possível para aquele tipo de informação, mas estava difícil. Prosseguiu o assunto:

– O Mateus? Ah é? E aí?

– Olha, acho que vai ser meio foda falar…

– Fala, porra…

– Ah, mandei um coraçãozinho quando ele apareceu. Sabe como que funciona essa merda, né?

– Aham.

– Aí ele já tinha mandado um coraçãozinho quando me viu também, semana passada.

– E aí?

– A gente conversou um pouco e ficou de sair essa semana.

– Que dia?

– …

– Quando que vai ser, Mayara?

– …Sexta-feira.

– Entendi.

– Mas como amigos.

– Não, não…tudo bem. Vão onde?

– Acho que num barzinho de pagode perto de casa, que vai ter show do Ostentasamba, sabe? Mas tamo vendo. Não fica brava comigo.

– Não tô – Andressa prosseguiu o assunto, quase sincera.Mayara olhou para o relógio e fingiu que lembrava de alguma coisa. Manteve-se encarando a mesa, o chão, uma ou outra pessoa das mesas ao redor. Alguém devia ter ouvido. Talvez pior que sair com o marido da amiga, só se muita gente ficasse sabendo.

– Tô estragando nossos 15 anos de amizade, né? Nossa…

– Não. Nem meus 9 anos de casamento. Dá nada não.

– Amiga, me perdoa.

– Só pra saber: você me chamou aqui pra contar isso?

– Não. Meio que escapou.

– Entendi. Então vocês iam sair sem me avisar?

Elas nunca mais seriam vistas rindo juntas. Andressa entendeu, então, que Mayara não havia superado a fase de quando se conheceram, com a lógica de vida que desenvolveram no começo da faculdade, quando moravam em um pensionato e viviam de forma livre, solta, festeira. E pensou ainda que é bom que algumas coisas nunca mudem, por alguma razão.

– A gente tava pensando em como te dizer.

– Entendi.

– Desculpa.

– Não, tudo bem. Você gosta de batata frita com bacon, né?…

– Desculpa mesmo…

– …porque eu quero pedir, mas não aguento uma porção inteira.

– …

– E aí? Gosta?

– Aham. Eu divido com você.

O garçom Jefferson havia ouvido quase toda a conversa entre as amigas, mas não ficou muito surpreso com o teor. Dedicou-se a anotar o pedido delas e encaminhá-lo para a cozinha, que tinha só mais dois sanduíches rápidos antes da porção das moças. Pediu para capricharem no bacon, que ia ser bom “pra fazer uma moral”. Os funcionários da cozinha acataram a ideia. O chopp escuro havia terminado no bar. O garçom notou uma mancha de mostarda na própria calça de trabalho, e pensou que precisava comprar sabão em pó, mesmo que tivesse que esfregar aquela peça na mão devido ao círculo amarelo que agora exibia na roupa.

Marco Antonio Santos

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Escala de Baumé 0 5052

Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Chegada 0 6550

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, prepare a casa
e meu coração pulou afora
bateu amor por toda a cidade

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Ela está vindo!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, mas levo ainda um pouquinho
e antes de te ter em meus braços
já tenho em todos os sonhos do mundo

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Minha menina vai chegar!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, já não falta mais tanto
e prevendo as noites com você,
me vejo em claro sonhando

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Vou ser pai