
Sempre que o relógio da parede marca 20h45, Catarina encosta a porta do bar para indicar aos clientes que o local está prestes a encerrar as atividades do dia. O gesto também evita que um ou outro retardatário apareça. Este é um hábito antigo, mas nem por isso Catarina está acostumada. Antes, era Rodela, seu marido, o responsável pelo ritual. Agora, desde que o marido passou a residir no maior hospital da cidade, “sem previsão de alta”, dizem os médicos, toda semana, há quase um ano, esta é uma tarefa para Catarina.
Era de se imaginar que um homem tradicional feito seu Rodela – apelido que não tem muito a ver com o nome da certidão, Tiburcio, e que ninguém nunca soube explicar a origem – se incomodasse em saber que sua esposa cuidava do estabelecimento sozinha. Mas não fechar as portas foi uma decisão do casal, que precisava do dinheiro que o negócio rendia e tinha um apreço especial pelo peculiar empreendimento.
A localização do negócio era privilegiada, mas nem sempre foi assim. “Antes, isso aqui era tudo mato”, contava Rodela para cada cliente novo, logo após explicar que aos poucos a vizinhança cresceu e a região passou a ficar valorizada. Não demorou muito para virar uma das áreas mais nobres da cidade.
O espaço reúne, todo dia, maiores de cinquenta anos e aqueles jovens-idosos, ou idosos-jovens, que gostam de viver como quem já está no segundo século de vida. Uma mesa de sinuca divide espaço com um fliperama do Street Fighter, que não funciona, e um pebolim com os dois times desfalcados. A trilha sonora, geralmente o mesmo CD gravado por um cliente solícito, vai de Raça Negra a Pink Floyd em uma mudança de faixa. E ninguém demonstra maiores preocupações com essas composições.
Agora o bar não vende mais cigarro. Ela prefere assim. De alguma forma, associa o tabaco ao estado de saúde do marido, embora os médicos tenham explicado que o vício de Tiburcio não foi o responsável pela doença. Os clientes não ligam muito para isso, e quando precisam vão até a banca que fica a poucos metros do boteco.
Desde que o marido adoeceu, Catarina se tornou uma pessoa mais fechada, de pouca conversa. É menos carrancuda quando o bar está cheio e o ambiente é de algazarra. Parece que manter o bar movimentado distrai e faz bem à Sra. Rodela, que enfim se vê à frente de pequenas decisões do cotidiano.
O trato com fornecedores e clientes já não trazia maiores dificuldades, mas quando o engravatado entrou no bar, Catarina não entendeu muito bem o que aquele desconhecido, tão bem vestido, poderia querer ali no recinto.
– Entrega para o Sr. Tiburcio – disse o homem, que logo em seguida se apresentou como advogado da família Sotto.
Agora, Catarina e Tiburcio têm poucos meses para desocupar o imóvel. Nunca se preocuparam em registrar o terreno e acharam que nunca teriam maiores problemas com a posse do imóvel. “Herança de família antiga, que só soube que era dona disso aqui, agora, em um novo inventário”, explicou o advogado, que passou um bom tempo esclarecendo o imbróglio, que não deu chances nem para a possibilidade de usucapião. Ao casal, na melhor das hipóteses, restaria uma modesta compensação financeira se não atrasasse a desocupação do local nem atrapalhasse a venda do terreno.
Quase 21h, hora de encostar a porta mais uma vez.
por Felipe Kryminice