
Os gatos do Recoleta não sabem, mas são o presente que dá vida à memória de outros tempos. Os mortos por ali vivem de histórias que aos poucos se diluem e são milhares. Os gatos não têm nomes, apenas cores, e são infinitos.
Uma gata magrela, dessas ainda jovens, de pelo todo negro e uma pequena mancha branca no peito, vive a caçar pardais que habitam a oliveira entre os mausoléus das famílias Méndez e García. Nenhum dos que ali jazem se conheceu em vida, mas ninguém parece se opor à eterna vizinhança. Muito menos magrela, que vive a correr e pular de um lado a outro com a destreza dos que não têm onde descansar em paz.
A poucas quadras dali é território de um amarelo, desses corpulentos, com rabo grosso e patas largas. Vive no túmulo de Talita Valdés (1990-2010), sobre a tampa de granito preto aquecida pelo sol. É manso e se deixa tocar por todos, algo raro por ali. Diante do busto de bronze já esverdeado de uma Talita ainda jovem, amarelo fica à vontade. Lambe-se todo, com os olhos fechados e a sinceridade que só os gatos são capazes de oferecer a qualquer momento. Lambe a pata direita e esfrega as orelhas com um prazer invejável aos humanos, sempre tão escondidos de si.
Amarelo vive indiferente ao fato de que Roberto Gutiérrez (1983-2010) está a poucos metros dali. O mesmo Roberto que viveu clandestinamente com Talita, antes de ambos se tornarem os sorrisos amarelados pelo sol em suas próprias lápides. Talvez ninguém jamais tenha sabido das juras daquela paixão eterna. Talita, a menina moça, mal aprendeu a amar e se tornou um busto de bronze a esverdear. Roberto morreu de amores em vida e sucumbiu ao vazio remediado lá pelo final da mesma semana.
Dia desses, no meio da noite, amarelo saiu em disparada atrás de um rato cinza, numa caçada que não chegou a lhe servir à fome. Cansado, sentou sobre Gutiérrez. Adormeceu na catacumba do homem que morreu com a alma a transbordar. Amarelo foi a primeira interação física entre Talita e Roberto nos últimos quatro anos, quase cinco.
Da intuição dos gatos, jamais saberemos, apenas desconfiamos.
Pelo Recoleta afora, infinitos gatos vadios, sem nomes, mas com muitas cores e olhos relampejantes pulam, correm, espalham vida entre os milhares de Quirogas e Evitas que há anos nos movem as lembranças.
Pais. Mães. Todos filhos, que calmamente se acomodam no seio do esquecimento.
Pouco depois, amarelo acordou, arqueou as costas ouriçadas, sentou sobre as patas traseiras, lambeu-se um pouco, bocejou e, como quem sabe o que faz, volta a passos ligeiros até Talita, onde dorme profundamente até o amanhecer.
O sol acende a escuridão da madrugada e traz as milhares de pessoas que inundam com vida as vielas do Recoleta. Uma vida que vibra pelo dia e que se apaga com o sol a mergulhar no horizonte, quando, uma vez mais, o Recoleta será dos infinitos gatos que brincam com as lembranças de nós.
por Rafael Antunes
Ilustração: Nina Zambiassi
Muito bonito.