
O sangue que escorria pelo cabo até a lâmina do machado era o mesmo que lhe enchia o coração de um vazio sem fim. Diante da mágoa ao chão, Thales em nada lembrava a vida. Foram anos de cuidados e amor até que a frustração o trouxe à dor final da tarde de hoje.
Ainda na infância Thales havia plantado a muda do pé de limão que ganhou na escola num pote amarelo no dia da árvore.
No fundo do quintal de casa o pé de limão ganhou a terra. Ali cresceria e ultrapassaria a altura de Thales em uma trajetória rumo ao sol. E Thales sonhou dia a dia com os fortes galhos que lhe sustentariam a vida em algum futuro. O limoeiro seria seu reino.
Os alertas eram constantes. “Mas pé de limão tem espinhos”, falava o pai, “Limoeiro não foi feito pra subir”, dizia a mãe, e Thales dava de ombros como só as crianças são capazes de fazer para a realidade e seguia conversando com sua arvorezinha que passava os dias a conquistar os ares. “Quando você crescer, eu vou morar lá em cima”.
Os dias passaram, Thales cresceu e o pé de limão também. O menino ganhou tamanho mas não esqueceu o sonho de viver na árvore. Este dia estava cada vez mais próximo, até que os espinhos apareceram.
Aos poucos a realidade abraçava Thales com braços gelados para desfazer os sonhos da criança que resistia em ir embora. Aos poucos a frustração que os espinhos lhe causavam era transformada em ódio. Um rancor que crescia dentro de si mais rápido do que os galhos que retribuíam com espinhos todos aqueles anos de cuidados.
Hoje Thales decidiu subir em seu pé de limão. Contornaria os espinhos e realizaria o sonho que planejou nestes anos todos. Era pra isso que havia vivido, afinal.
Tateou o primeiro galho que sustentaria seu peso, ajustou as mãos entre os espinhos e subiu. A calça enroscou e ele puxou. Sequer percebeu rasgar. As primeiras dores nós sempre pensamos que não são nada, que vão passar.
Ajustou novamente as mãos e passou ao galho acima. Dessa vez, cortou o braço e o sangue lhe escorreu até o cotovelo. Thales havia esquecido de sentir as coisas. Queria subir. Alcançar o céu com seu pé de limão.
Pegou no próximo galho de qualquer jeito e suas mãos começavam a tingir de dores tudo por onde passavam. Aos poucos Thales transbordava e deixava um tanto de si a cada toque. Sem perceber, ele e o limoeiro tornavam-se um só. Até que chegou ao último galho, à mercê do vento, pra lá e pra cá, abraçado pelo silêncio das folhas.
Suas mãos doíam uma dor que lhe doía na vida inteira. Furos e cortes traziam à tona o sangue escuro que tingia o limoeiro.
Cego pela dor, Thales desceu ainda mais rápido do que havia subido. Já não havia mais o que machucar. O pé de limão estava vermelho.
O reinado de Thales entre os galhos durou exatos dezessete minutos e, de volta ao chão, caminhou até a despensa nos fundos de casa e pegou o machado que jamais imaginou usar. Como quem sabe o que faz, veio até seu reino que ardia em sangue.
Uma, duas, três, inúmeras dores acompanharam os golpes que causavam tremores na imponente árvore. As folhas que caíam anunciavam que o orgulho se inclinaria diante da dor, até que o reino de Thales sucumbiu ao fio sequer afiado do velho machado.
Ali, diante do pé de limão banhado de dor, a criança de Thales envelheceu e teve certeza de que havia dedicado uma vida inteira a cultivar um amor que lhe era só espinhos. Jamais frutos, sequer flores.
Sem se importar se haveria outra muda em um pote amarelo, soltou o machado na terra, virou as costas para tudo o que havia sangrado e seguiu acompanhado pelas marcas eternas que os espinhos nos deixam.
Texto: Rafael Antunes
Ilustração: Nina Zambiassi