
Não gosto de sair de casa no inverno, nem pra ir ao mercado. Tenho a impressão de que todo o dinheiro que ganho no decorrer do ano, gasto com delivery de comidas nesse período. Meu aquecedor me segue pela casa como um cachorro fiel e acho que o amo mais que qualquer animal de estimação que já tive. No noticiário disseram que a sensação térmica vai chegar a três graus negativos. Se Deus existe, tenho certeza de que ele amaldiçoou nossa espécie com o frio. Eu, pelo menos, obtive a benção de poder trabalhar em casa. Valeu, Deus.
Honestamente, não lembro se quando criança odiava tanto o inverno. Gostava do chocolate quente, dos jogos de tabuleiro e do meu pai acendendo a lareira no começo da noite. Só não gostava dos casacos de tricot que minha avó fazia e que minha mãe me obrigava a usar, queria usar moletom, igual ao meu irmão. Mas a lembrança de todos juntos e separados, na sala, próximos à lareira, é a melhor imagem que tenho da minha família. Viveria a vida toda no inverno pra ter tudo isso de volta. Saudade de quando a gente se entendia.
Pior que passar frio por estar mal agasalhada é congelar por estar com os pés molhados.
A gente tinha combinado de se conhecer, depois de dois meses conversando pelo aplicativo. Cinco minutos antes do horário combinado banhei meus pés, meias e sapatos numa poça de água de sarjeta, há exatos trinta e sete minutos antes dela aparecer. O vento tentava me expulsar pra casa. Nunca senti tanto frio. Enfim ela chegou, expliquei a situação e ela me levou para sua casa, para me dar meias secas. Em pouco tempo já estava aquecida. E contrariando as baixas temperaturas, foi o inverno mais quente que já vivi.
Cinema iraniano, arte moderna e literatura polonesa. Os gostos dela eram muito diferentes dos meus. Nunca fui em tantas exposições de arte, quando na maioria das vezes não entendia nada.
Restaurantes que serviam comida crua porque faziam bem à saúde. Cinemas antigos com cheiro de cigarro velho e muitos assentos vagos. Passeios noturnos em parques quase vazios, com exceção de nós, uma garrafa de vinho e muita névoa. Ia pra casa só na hora de dormir, coisa que mal fazia.
O inverno passou como um sopro. E o que se sucedeu foi o nascimento de novas flores.
O sol voltou a brilhar e trouxe consigo dias mais longos e entediantes. Comecei a desvendar os roteiros dos filmes em menos de dez minutos, mesmo que isso fosse a duração de apenas uma cena. Na cama, os atalhos tomaram o lugar de todos os outros caminhos. Enfim o novo parou de exercer sua força. Não havia mais o que ser descoberto, e o que já conhecíamos nos transformava em estranhas. Era metade da primavera e enfim o frio havia tomado conta.
Escrito pelo Gabriel Protski
Ilustrado pela Sabrina Gevaerd Montibeller