
As botas estavam tingidas de castanho avermelhado. Era o efeito de caminhar naquele solo oxidado. Fazia vinte e cinco dias que Daren explorava aquela região, conhecida como Mad Vallis. Nesse período, cobriu pouco mais de um terço de todo o território, que não passava de um grande cânion forjado pelo impacto de um cometa, um pouco menor que Caronte. O evento havia acontecido há cerca de dez anos. A tempestade formada em Mad Vallis impediu a aproximação durante este período. Agora, quando o turbilhão havia passado, restava investigar. “Afinal a poeira cósmica é a mãe de todos”, brincou Daren consigo mesmo. Já estava na décima segunda hora de caminhada, do vigésimo quinto dia de exploração. Precisava encontrar logo um lugar para abrigar-se e dar início ao processo de reciclagem do tanque de água e oxigênio. No pulso esquerdo, preso como um bracelete, estava o computador. A tela mostrava o mapa de Mad Vallis com as rotas de travessia possíveis. Haviam sido traçadas com ajuda de imagens da sonda deixada na órbita. Aquela cratera tinha capacidade de abarcar quase duas vezes o pequeno país onde Daren havia nascido.
Quando criança, ele costumava ouvir uma música que contava a história de um garoto. A letra falava que o menino vivia em uma cidade tempestuosa e que costumava caminhar sozinho pelas ruas desertas. Perambulava por becos com grandes latões de lixo, paredes exibindo gigantescos desenhos grafitados e postes de madeira. A música dizia que a criança era boa, a cidade é que era insana. Certa vez, Daren escreveu seu nome na parede de um beco, parecido com os descritos na música. Na verdade escreveu um breve recado destinado ao menino solitário e assinou embaixo: “de seu amigo, Daren”. Agora, caminhando por Mad Vallis, desejava encontrar um recado esquecido, um recado amigável, um recado verossímil, gravado em uma das pedras oxidadas daquele grande cânion. Mas seria impossível. Ele era o primeiro humano a caminhar por aquele buraco vermelho e gigantesco chamado Mad Vallis. Mesmo que alguém, em algum tempo da história, tivesse anotado mensagem para ele em uma daquelas pedras enferrujadas e a tivesse deixado ali, naquele lugar inóspito, a noite eterna e pródiga em nuvens teria apagado a inscrição para sempre.
Daren continuou caminhando e fazendo anotações no computador. Fazia fotografias e vídeos curtos, de vinte e cinco segundos cada, mostrando desde visões gerais da paisagem até pequenos detalhes do solo. Os equipamentos respondiam por comandos de voz e transferiam as informações para o banco de dados da sonda em órbita. A visão de Daren ia até o horizonte e voltava. Às vezes passava horas olhando os próprios pés se movendo.
Tinha a impressão de ter o corpo empurrado para trás. Atravessou cadeias de dunas que desapareciam à medida que se distanciava delas. Depois de escalar um grande paredão de rocha ferrosa, avistou um desfiladeiro, seguido por uma longa planície. No meio da paisagem era possível enxergar uma gruta de quartzo rosado. No topo da gruta havia uma abertura e Daren percebeu que poderia passar as cinco horas de descanso (tempo necessário para o equipamento de reciclagem terminar o processo) deitado, observando as estrelas por aquela janela natural.
Após quarenta e cinco minutos, terminou a descida e caminhou até a gruta de quartzo. Retirou a bagagem das costas e montou o equipamento de reciclagem. Instalou as placas solares para abastecer o aparelho e armou a superfície plana, sobre dois tripés, na qual deitou. Depois de encaixar os grampos traseiros do traje na plataforma, a meio metro do chão, Daren esticou as pernas. Abriu um compartimento no peito, uma espécie de bolso, e retirou uma lente fina, então a colou no vidro do capacete. Apesar de bastante tênue, a lente tinha distância focal de cinco mil milímetros e decodificava os espectros luminosos, assim Daren podia identificar qual estrela estava observando, a que distância estava dela e quais os principais gases e demais componentes que a formavam. Era um trabalho de mapeamento secundário, inspirado nos grandes navegadores do passado e motivado muito mais pelo desejo de observar os astros do que por alguma necessidade de referenciamento estratégico. As sondas espaciais já haviam feito quase todo o trabalho. Aquela observação manual era apenas um jogo para passar o tempo. “Não importa o objetivo da viagem, em terra estranha, sempre somos turistas”, murmurou Daren sorrindo antes de pegar no sono.
Dormiu por três horas e quando acordou o equipamento de reciclagem tinha quase terminado seu trabalho. Mais doze dias e chegaria ao centro de Mad Vallis. Era a zona mais baixa de todo o cânion. Talvez lá encontrasse um portal para o subsolo. O computador mostrava que as temperaturas seriam as mais altas enfrentadas desde a entrada naquela atmosfera hostil. “O vale da morte fica no coração de Mad Vallis”, pensou. “Vou mensurá-lo, desvendá-lo e enviar os dados para a sonda, então seguirei até o outro lado”, concluiu otimista. Empacotou o equipamento e seguiu para mais uma etapa da jornada.
Escrito por Jadson André
Ilustrado por Caroline Rehbein