
Parado na porta, observando o movimento, vi do outro lado da rua quando o cara, de roupas largas e correntes prateadas no pescoço, abriu fogo. Não foi apenas um tiro ou dois, ele descarregou a arma. Fiquei paralisado. Ele atirou à queima-roupa, contra um grupo de pessoas. Três foram atingidas. Estavam em frente ao cinema de rua, conversando, já era quatro e pouco da manhã, não sei o que tanta gente fazia naquela encruzilhada. De frente para o cinema, há uma casa noturna. No terceiro lado da cruz fica o restaurante, de onde parte nosso ponto de vista e, completando a quarta metade da esquina, está o casarão histórico, abandonado. Era o cenário de uma festa que já deveria ter acabado.
Enquanto os tiros aconteciam, o mundo ficou em câmera lenta. Vi cada disparo ser acionado, não vi apenas a fumaça. Eu olhava pra arma e decifrava o modo como o atirador a apertava: era força, ódio, violência, loucura.
Na atmosfera lenta, os movimentos são estratificados, cada camada de intenção é aguda, salta aos olhos. Ele disparava como alguém que faz vingança; como um carrasco que executa a pena capital ou um publicano cobrando devedores. A coronha parecia morder a mão. O braço era um fuzil e o revólver a fria baioneta. O vingador fazia mira em alguém, mas agia com o desleixo de quem atira a esmo. A arma não expelia as cápsulas fumegantes; o tambor girava com cadência precisa em seu eixo e as guardava para sí.
Desde aqueles tiros, mudei a vida para sempre e não foi por medo. Talvez, o caminho escolhido me dirigiu a um nível metafísico diferente, me levou até uma fenda no espaço e torceu o tempo. Ali, parado na porta, fechei os olhos e entrei na sala branca, sem gravidade. Quando os abri, um segundo depois, olhei para os lados e não havia mais ninguém. A multidão na rua, na entrada da casa noturna e nas mesas e balcão do restaurante havia evaporado. Em toda a paisagem, a única coisa animada que ainda restava era um homem, de rosto triangular, com uniforme de centurião romano do século III, olhando em minha direção. Voltei a ficar paralisado.
“Pegue meu capacete e fuja, corra enquanto é tempo. Esse lugar não é para sempre”. Em seguida, ele me entregou o Gálea de bronze e permaneceu ali até eu colocar na cabeça. Meu guardião. O centurião vigilante é o despertar da autodefesa. Com ele, eu dividia aquela visão solitária. Ainda vi o atirador correndo rua acima, carregando a arma que expelia fumaça e entrando em um carro preto. As pessoas começaram a voltar aos poucos. Haviam se refugiado no banheiro, outras no terreno do casarão abandonado, outras atrás dos carros estacionados.
Desci a rua correndo e no meio do quarteirão vi um dos que havia sido baleado. Estava caído na calçada. Outros estavam em volta e uma mulher gritava: “chamem uma ambulância!”.
O capacete imperial gaulês era pesado e tinha um cheiro forte dentro. Depois de chegar à avenida do palácio, retirei a proteção de metal e a carreguei segurando na crina vermelha até chegar em casa, ainda pensando no que tinha visto.
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Escrito por Jadson André
Ilustrado por Caroline Rehbein