
Cinco ou quatro ou três ou duas ou uma. Quantas estrelas ele merecia? Na frente do edifício, noite fria e úmida, aguardei o Uber por longos nove minutos. A bateria do celular quase acabando, como se minha vida dependesse dela. Enfim, o carro chegou. “Desculpe a demora, eu fui pelo gps e me perdi.” “Ah, tudo bem…”
O mais estranho é que aquele motorista de Uber parecia um taxista. Na verdade, era igual um taxista. Típico: homem entre 55 e 60 anos, chamado Alceu – ou Seu Alceu, para os fãs da arte da rima boba – pele morena, cabelo bem branquinho, óculos de velho, camisa de velho, barba feita e dirigia assim meio inclinado pra frente com as duas mãos no volante, exceto quando mexia no celular preso ao painel. Nada de água, balinha ou ar-condicionado. O cheiro do carro também era de táxi. Seria um taxista infiltrado? Traidor do movimento? Seria o Gugu?
Partimos e logo tive a impressão de que ele estava se perdendo de novo. A cada dois minutos o celular alertava “sinal de gps perdido”, porém percebi que o Seu Alceu sabia o caminho de cabeça, como os meio-velhos geralmente sabem. Perguntei onde estávamos e ele disse que na rápida do Portão. Putz, ainda? Tanto tempo e ainda nessa rua? Esse motora tá dando umas voltas nada a ver, pensei. Calma, deve ser a bebida, eu tô bêbado. Não vá julgar um senhorzinho honesto antes de ter certeza!
Dizem que capricornianos são aficionados por julgamentos. Julgam os outros, julgam a si mesmos e acham que os outros julgam como eles julgam. Eu só acho que quem inventou isso estava falando besteira. Ou será que quem está falando besteira sou eu?
Epa, que viaduto é esse? Esse cara tá me levando pro Pinheirinho? Calma, eu tô bêbado. É um motorista de Uber, dizem que são superconfiáveis. Qualquer coisa você pode dar uma avaliação negativa depois… é isso! Vai tomar uma estrela só esse sem vergonha. Ouvi dizer que os motoristas precisam de uma média 4,5 para continuarem trabalhando. Imagina o estrago de uma estrela só. Vou acabar com a carreira desse cara.
Calma, cara, calma.
De repente o Seu Alceu coloca pra tocar uma rádio religiosa. Irreverente, começa também a mexer nas fotos do celular, com o carro em movimento. Poxa, campeão, ô ô ô faixa-preta, calma lá, mermão, assim você não tá me ajudando a te ajudar. Não rola uma musiquinha? Pensei, mas não falei. Ele deve ter família, deve estar orando por eles enquanto dirige de madrugada pra complementar a renda da casa. Mas pô, gps com defeito, rotas duvidosas, rádio crente, distração com o celular e esse cheiro de carro suado? Assim fica difícil.
Cinco estrelas: inocente. Quatro: prisão domiciliar. Três: regime semiaberto. Duas: 30 anos em regime fechado. Uma estrela: sozinho em uma cela com taxistas raivosos.
Defensores e promotores perlustravam os autos e a conduta delitiva atribuída ao indiciado na exordial acusatória. Interpelei o réu: “E o dia dos pais?”, mas ele foi evasivo. Será que era um pai tão bom que trabalhava em pleno dia dos pais? Ou um pai relapso que abandonou seus filhos com a progenitora? Aí, de repente, o Seu Alceu disse: “Olha só, apareceu um Pokémon”. Oh meu deus, ele era um Mestre Pokémon de 60 anos de idade, caçando com seu Uber por aí! Mas afinal, isso depunha contra ou a favor?
“Desembargador Motta com a Vicente?” “Não, não, um pouco mais pra cima. “Ah, então é ali pela Saldanha… vamos ter que pegar a Augusto Stellfeld pra virar”. Finalmente cheguei em casa e o senhorzinho me desejou um “Boa noite, guri.” – Epa epa, guri, não! Meritíssimo. Meritíssimo Senhor Guri!
Eu estava ébrio e decidi que teria que prorrogar o julgamento para o dia seguinte. Não seria justo dar-lhe poucas ou muitas estrelas naquele momento. Seu Alceu teria que dormir sem a consciência tranquila de uma avaliação positiva. Teria que dormir encolhido no cantinho da cama pensando em tudo que fez. Bato o malhete, todos podem se retirar.
Murilo.
Muito bom! =)
Interessante o fluxo do pensamento