Meritíssimo passageiro 2 1628

Cinco ou quatro ou três ou duas ou uma. Quantas estrelas ele merecia? Na frente do edifício, noite fria e úmida, aguardei o Uber por longos nove minutos. A bateria do celular quase acabando, como se minha vida dependesse dela. Enfim, o carro chegou. “Desculpe a demora, eu fui pelo gps e me perdi.” “Ah, tudo bem…”

O mais estranho é que aquele motorista de Uber parecia um taxista. Na verdade, era igual um taxista. Típico: homem entre 55 e 60 anos, chamado Alceu – ou Seu Alceu, para os fãs da arte da rima boba – pele morena, cabelo bem branquinho, óculos de velho, camisa de velho, barba feita e dirigia assim meio inclinado pra frente com as duas mãos no volante, exceto quando mexia no celular preso ao painel. Nada de água, balinha ou ar-condicionado. O cheiro do carro também era de táxi. Seria um taxista infiltrado? Traidor do movimento? Seria o Gugu?

Partimos e logo tive a impressão de que ele estava se perdendo de novo. A cada dois minutos o celular alertava “sinal de gps perdido”, porém percebi que o Seu Alceu sabia o caminho de cabeça, como os meio-velhos geralmente sabem. Perguntei onde estávamos e ele disse que na rápida do Portão. Putz, ainda? Tanto tempo e ainda nessa rua? Esse motora tá dando umas voltas nada a ver, pensei. Calma, deve ser a bebida, eu tô bêbado. Não vá julgar um senhorzinho honesto antes de ter certeza!

Dizem que capricornianos são aficionados por julgamentos. Julgam os outros, julgam a si mesmos e acham que os outros julgam como eles julgam. Eu só acho que quem inventou isso estava falando besteira. Ou será que quem está falando besteira sou eu?

Epa, que viaduto é esse? Esse cara tá me levando pro Pinheirinho? Calma, eu tô bêbado. É um motorista de Uber, dizem que são superconfiáveis. Qualquer coisa você pode dar uma avaliação negativa depois… é isso! Vai tomar uma estrela só esse sem vergonha. Ouvi dizer que os motoristas precisam de uma média 4,5 para continuarem trabalhando. Imagina o estrago de uma estrela só. Vou acabar com a carreira desse cara.

Calma, cara, calma.

De repente o Seu Alceu coloca pra tocar uma rádio religiosa. Irreverente, começa também a mexer nas fotos do celular, com o carro em movimento. Poxa, campeão, ô ô ô faixa-preta, calma lá, mermão, assim você não tá me ajudando a te ajudar. Não rola uma musiquinha? Pensei, mas não falei. Ele deve ter família, deve estar orando por eles enquanto dirige de madrugada pra complementar a renda da casa. Mas pô, gps com defeito, rotas duvidosas, rádio crente, distração com o celular e esse cheiro de carro suado? Assim fica difícil.

Cinco estrelas: inocente. Quatro: prisão domiciliar. Três: regime semiaberto. Duas: 30 anos em regime fechado. Uma estrela: sozinho em uma cela com taxistas raivosos.

Defensores e promotores perlustravam os autos e a conduta delitiva atribuída ao indiciado na exordial acusatória. Interpelei o réu: “E o dia dos pais?”, mas ele foi evasivo. Será que era um pai tão bom que trabalhava em pleno dia dos pais? Ou um pai relapso que abandonou seus filhos com a progenitora? Aí, de repente, o Seu Alceu disse: “Olha só, apareceu um Pokémon”. Oh meu deus, ele era um Mestre Pokémon de 60 anos de idade, caçando com seu Uber por aí! Mas afinal, isso depunha contra ou a favor?

“Desembargador Motta com a Vicente?” “Não, não, um pouco mais pra cima. “Ah, então é ali pela Saldanha… vamos ter que pegar a Augusto Stellfeld pra virar”. Finalmente cheguei em casa e o senhorzinho me desejou um “Boa noite, guri.” – Epa epa, guri, não! Meritíssimo. Meritíssimo Senhor Guri!

Eu estava ébrio e decidi que teria que prorrogar o julgamento para o dia seguinte. Não seria justo dar-lhe poucas ou muitas estrelas naquele momento. Seu Alceu teria que dormir sem a consciência tranquila de uma avaliação positiva. Teria que dormir encolhido no cantinho da cama pensando em tudo que fez. Bato o malhete, todos podem se retirar.

 

Murilo.

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Escala de Baumé 0 4829

Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Vida comum parte 1 0 5016

Vida comum parte 1

Véspera de feriado, antes da meia-noite e eu já com meia garrafa de conhaque na mente. Curtia me derreter no gole, de dose, de lata, de garrafa, de todo jeito. No feriado rolou um churrascão que nem lembro se comi, dropei umas caipiras antes de acender o fogo e fiquei mais preocupado com a temperatura das garrafas que da carne. Sábado a ressaca com a mão pesada, tava batendo forte, contra-ataquei com uns latão, encostado nos fundos do posto com a rapeize, só flagrando os doidinho tirando uns racha de Parati, Chevette e Gol Chaleira. Domingo rolou rave na região metropolitana, no meio do mato, não virava ir de bonde, botei uma gasolina na Bizz e meti o pé; duas carteiras de Minister depois já tinha descido whisky com energético, vodka com suco, vários ampola, um doce e umas água colorida que os parceiro botaram, sei lá qual fita, puta gosto de remédio. Bati a nave antes da hora, cheguei em Grayskull sem nem aproveitar a viagem, ensaiava falar e não saia voz, tava tenso, me mordendo, fiquei nervoso: deu bad. Tentei endireitar a caminhada tomando umas águas, mas não rolou, a conta não batia, os dentes rangendo, coração agitado querendo se mudar do peito. Precisava voltar pra minha goma, tomar um banho, talvez dois, sei lá, só precisava vazar, montei na moto e fui. Tava com dois IPVA atrasados, cabreiro de cair numa blitz, e se soprasse um bafômetro explodia a máquina – certeza. Queria chegar logo, entrei no modo Valentino Rossi e corri a milhão, como se fosse fuga. Foi aí que deu ruim no piloto automático, se pá que dormi em cima do jato, lembro só de uns clarão, uns flash. Vi o céu por baixo, deitado no asfalto, sei lá qual fita, tudo nublado, que dia bosta. Me liguei e já tava todo remendado no hospital, numa sala com umas vinte cabeça, todo mundo fudido, uns mais outros menos. Eu? Era cabeça de chave do grupo dos desgraçados: com a lata do frankstein, olho roxo, cara inchada, nariz quebrado, uns ponto na testa. Trinquei uma costela e quebrei outras duas, a clavícula rachou e a mão tava na carne viva. O médico foi desenrolando essa lista aí e eu aceitando na moral, os pensamentos embaçados, cheio de analgésico, todo bagunçado de dor. Aí teve uma mão que ele deu uma pausa, ficou mais bolado e mandou A real: disse que eu sofri um choque cabuloso no quadril, perdi mais de 80% do fígado, que num tinha como dizer o tamanho real do estrago, mais uma fita era certa, nunca mais ia poder beber, se tomar meia lata que seja, posso encomendar o caixão. Acordei umas três vezes crente que tava tendo um pesadelo, foquei umas horas que tava numa brisa errada de doce. Mas não. A vida é uma viagem desgraçada.