23h28 0 2800

Na volta pra casa, passamos em frente ao restaurante do nosso primeiro encontro.

A pintura da fachada desgastou com a mesma intensidade que as minhas lembranças.

Vagas, porém vivas.

De lá pra cá vivemos um ritual:

Ela sempre pede um prato novo para experimentar.

Eu peço o preferido dela.

E acabamos trocando depois da primeira garfada.

Por um instante revivi dias que eram azuis e eu não sabia.

Lembrei da primeira vez que a vi adoçar o café.

Aliás, ela adoçava tudo.

O café, o suco, o chá e por fim, minha vida.

Era um tempo em que eu olhava mais pros os olhos dela do que pros ponteiros do relógio.

Quando foi que tudo mudou?

Divago enquanto minhas mãos seguram o volante tão próximas uma da outra, que parecem presas por algemas invisíveis.

Vejo o reflexo distorcido do semáforo vermelho através de uma poça d’água no asfalto.

Reduzo a velocidade. Olho para o lado e a vejo dormindo, com seu doce queixo acomodado sobre o cinto de segurança.

Também vi medos nunca superados, feridas nunca curadas e desejos nunca supridos.

Por um instante sua pele tornou-se uma vidraça, e seus orgãos, suas fraquezas.

O sinal ordena que eu siga.

É o que faço há anos.

Cuidando dela e das suas inseguranças.

Porque mudanças acontecem.

Mas sei que ao despertar,  ainda serei sua inspiração, e ela, minha única certeza.

texto: Jean Suzuki

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Frio de matar Mendigo 0 3165

Estamos na copa de 2018, no Brasil, uma manhã chuvosa e um frio de matar mendigo, enfim, o descrito se consumou, estava indo até o posto próximo a minha casa e para chegar até o posto eu tinha que passar por uma trincheira, estava eu, fumando meu cigarrinho, eram exatamente 6:48 da manhã, quando, começo escutar um som de um violão e uma voz meio rouca, com soluços e demonstrando um tanto de álcool no sangue do seu portador, cantando o seguinte refrão:

– um toque de bola

– é nossa escola

– nossa maior ambição

– estou nas trincheiras

– Minha companheira pro frio, não resistiu

– enfim, esse é nosso Brasil

Em seu violão de apenas 3 cordas, esse mendigo, parecia ser o melhor no que fazia, chegando mais perto, percebi que ao seu lado, havia um corpo, enrolado em uma coberta, creio eu, que a única coberta que existia para eles dois, então, decidi parar e perguntar a ele o que havia acontecido, claro, que, eu já tinha uma certa noção do que tinha se passado, afinal, como disse no começo, estávamos na época em que o frio avassalador das cidades do Sul matavam mendigos.

– Olá meu amigo, desculpa lhe interromper, mas será que eu posso lhe ajudar de alguma forma?

– Olá meu senhor, eu não quer ser grosso com o senhor, mas, você só poderá me ajudar se tiver uma forma de voltar no tempo, você consegue?

– Pouts, infelizmente eu não consigo te ajudar desta forma, mas, me conte o que realmente aconteceu e vejo como posso te ajudar.

– Então senhor, essa é a resposta que eu estou acostumado a ouvir todos os dias, me perdoe, qual é seu nome?

– Meu nome é Roberto, amigo, e o seu qual é?

– Então seu Roberto, eu já não consigo lembrar meu nome, pois, de tão acostumado que estou em ouvir as pessoas me chamarem de mendigo, vagabundo, sem vergonha e ladrão, acabei que esqueci o meu nome verdadeiro, mas, se quiser, pode me chamar Zé, afinal, sou um Zé ninguém.

Nesse momento, eu fiquei sem palavras, por pelo menos uns 2 minutos, olhando para aquele mendigo que estava desacreditado totalmente da vida e de sua existência e claro, não conseguia deixar de olhar para aquilo enrolado no coberto, que parecia realmente um corpo, quando consegui voltar daquele “transe” eu criei coragem e perguntei.

– Então, não vou lhe chamar de Zé, pois, pra mim, você não é um Zé ninguém, irei lhe chamar de amigo, até que você consiga lembrar o seu nome e queira me falar, até lá, me perdoe, você pode me dizer quem está deitado aí do seu lado? Aquilo que você estava cantando realmente aconteceu?

– HAHAHAHA, Senhor Roberto, o senhor é engraçado, nunca, desde que eu perdi tudo, ninguém parou para me ouvir por mais de 1 minuto e agora você me aparece querendo conversar comigo, olha, eu não sou de falar meu nome para os outros, afinal, ninguém se preocupou em perguntar, eu não esqueci meu nome não, como você me parece ser alguém legal, meu nome é Heitor, a, em relação ao que você me perguntou sobre o que estava cantando, sim, é verdade.

Mais alguns minutos de silêncio, pois, foi a primeira vez que eu vi o fato consumado de algo que eu sempre ouvi falar.

– Heitor, poxa, que nome forte meu amigo, fico infeliz pelo que aconteceu, mas, quem de fato era essa pessoa que estava lhe acompanhando?

– Então, essa pessoa que estava me acompanhando, desde que perdi tudo é alguém que eu encontrei nas ruas meu nobre, é a única pessoa que me ofereceu metade da comida que ela tinha, metade do cobertor, metade da bebida, metade do dinheiro e o seu coração, ela, enxergou em mim o que mais ninguém da minha “família” conseguiu enxergar, logo que perdi todo o dinheiro que eu tinha, o emprego, eu fui expulso de casa, com uma mão na frente e outra atrás, eu não gosto de lembra dessa época, então, vou para de falar por aqui e agora, sabe aquele pergunta que o senhor me fez? Sobre me ajudar de alguma forma? O Senhor pode sim, me faz o favor de ligar para alguém e pedir para vir aqui e outro favor que lhe peço, de coração, me deixe sozinho com a minha amada, preciso me despedir, por favor, vá, sem falar uma palavra e nem sequer olha para trás, pois, nos dias em que eu precisava, foi exatamente o você e milhares de pessoas fizeram, um forte abraço e reflita.

Eu já não queria mais importunar o Heitor, porém, peguei uns trocados do meu bolso, como um sinal de rendição por todas as vezes que o ignorei e coloquei ao lado do corpo enrolado na coberta, voltei a acender o meu cigarro que havia apagado por falta de tragadas, não olhei para ele, nem para o corpo e apertei o passo em direção ao posto, comprei mais uma carteira de cigarro, uma bebidas e voltei pelo mesmo caminho, desta vez, preferi atravessar a rua, desde então, nunca mais o vi.

Texto: Giovane Santos
Ilustração: Helton de Prado Carvalho

O estranho caso da sommelière de lágrimas 1 3444

Por Mariana Porto

 

No dia em que nosso amor morreria, você me trouxe um vinho de qualidade questionável e disse “isso é pra você aprender que a vida pode te surpreender”. Na hora, juro que fiquei inicialmente sem entender, já que o fato do vinho ser meio agressivo eu já esperava. No entanto, confesso que isso jamais tinha sido um problema em nossa relação.

Sem medo de parecer clichê, posso dizer que seus beijos sempre harmonizaram tão bem, e que sua boca me preenchia com tanta delicadeza, que mesmo se eu tivesse acabado de tomar uma dose da pior cachaça da praça, ainda assim, me desceria com o frescor mais equilibrado que já provei.

Mas, naquele dia, eu senti tudo como um grande coice, de uma brutalidade que foi realmente inesperada. Você segurou meu rosto, se despediu, e me deu um beijo seco. Sua mão estava suada, mas entendo que também não deve ter sido fácil pra você — tanto me dizer adeus, quanto tomar aquele vinho ruim.

Você saiu e bateu a porta, me deixou e deixou aquela garrafa que, no fim, fiz questão de guardar como souvenir, só pra lembrar do azedume que nosso amor se tornou. Serviu também para não esquecer de que você me largou ali, sozinha, e tomando aquele vinho vagabundo diluído em uma tristeza profunda. “Sommelière de lágrimas”, é um título eu ostento até hoje por sua causa.

Mas, sendo bem sincera, admito que eu guardo essa garrafa vergonhosa principalmente como uma artimanha pra tentar me impedir de sentir saudades. Essa saudade de quando eu poderia me embriagar inteira de você, e ainda me manter de pé. Feliz. Com a boca preenchida, com o frescor do amor novo. Porque eu sinto sim saudades. Todos os dias. Desde o dia que nosso amor pareceu que morreu.

“Oh you are in my blood like holy wine
You taste so bitter
And so sweet oh
I could drink a case of you darling and I would
Still be on my feet
Oh I would still be on my feet”