postado por Rafaé, ponto.
Eu a conheci ainda menina. Naquela fase de pós adolescência, quando me surpreendia com sua maturidade e sua ingenuidade me cativava. Lembro bem da maneira como ela entrava na sala de aula, no primeiro ano de faculdade. Aquele caminhar inseguro e distraído. Sim, insegurança e distração juntas. Provavelmente uma aparência insegura devido à sua constante distração, levando em consideração que o inseguro nunca se distrai.
Confesso que não acreditava na força de nossa paixão, até que ela viajou. Não lembro quais foram os motivos, nem pra onde foi – talvez a casa dos pais. Recordo apenas de pensar nela todos os dias. Motivo que me levou a escrever aquele livrinho. Um misto de paixão e infantilidade. Com um maço de papeis coloridos e lápis de cor, manifestei meus primeiros sintomas de amor.
O resultado disso? O inevitável: o amor eterno; os planos; os filhos; a casa; o gramado; cachorro; gato; férias. Enfim, aquelas projeções que todos, em algum momento da juventude erramos. Não sei se seria necessariamente um erro. Mas aquelas coisas que a gente fala ou faz, sem se dar conta de que não queremos realmente sustentar pelo resto de nossas vidas. Ela me entende bem quando digo isso. Acho.
Por sorte, ela esteve ao meu lado quando mais precisei. Só foi embora depois, quando mandei.
Calma. Está tudo sob controle. Hoje tirei a noite pra tomar meus melhores vinhos.
Ela foi, durante muito tempo, a única pessoa com quem consegui dividir a cama com prazer. A única com quem me preocupei em satisfazer e demonstrar carinho nos breves momentos em que acordava pela madrugada pra arrumar os cobertores. Um abraço por trás e um beijo nas costas eram consentidos com um leve mexer de ombros e ela puxava meu braço, ajustando ainda mais os nossos corpos. Levemente eu passava a mão em suas coxas, desarrepiando-as. “Acho que ainda demora a amanhecer”. Nunca amanheceu. Seu corpo sempre foi meu cúmplice. Com o tempo percebi que nosso diálogo sempre havia sido muito corporal.
Acabou? Tem mais vinho aí ao seu lado, na segunda porta. Isso. Vamos experimentar o Chateau d’yquem. Comprei pelo nome, confesso.
Dia desses tentei a pintar novamente. Numa tela em branco comecei a tracejar seu fino contorno em preto. Seus seios, levemente desencorajados, que conheci com o encaixe perfeito para minhas mãos. Os mamilos rosados deixei pra depois. Sua cintura suavemente fina. Todos os traços firmes, sem vacilo algum. Até que cheguei às pernas. A partir daí não pude fazer nada além de espirais. Espiral sobre espiral, como um emaranhado impossível de compreender se fecha ou abre.
Belos seios sem mamilos, uma silhueta vazia sobre um emaranhado indefinido. Foi tudo o que consegui retratar dela, mas não pude guardar. Joguei em algum canto, onde um dia eu possa achar acidentalmente.
Não me sinto bem. Preciso dormir. Pode levar a garrafa. Não quero como resquícios de uma noite apenas os lençóis sujos que aumentam a conta na lavanderia; acordar e lamentar por existir uma realidade à qual estou condenado a viver assim que abrir os olhos e perceber uma estranha ao meu lado.
Ela possuia os únicos olhos que me diziam todos os dias que retornariam ao meu corpo o quanto antes. Já não sei mais dela. Já não sei mais de seu corpo.
“Tá. Agora chega. Você sabe que eu detesto essa sua falsa ironia de me tratar pela terceira pessoa, como se eu não estivesse aqui. Você pode, por favor, falar diretamente a mim?”
Desaprendi a lidar com isso…
“Mas eu estou aqui!”