Uma questão de espaço 0 631

postado por Rafaé, ponto.

Eu a conheci ainda menina. Naquela fase de pós adolescência, quando me surpreendia com sua maturidade e sua ingenuidade me cativava. Lembro bem da maneira como ela entrava na sala de aula, no primeiro ano de faculdade. Aquele caminhar inseguro e distraído. Sim, insegurança e distração juntas. Provavelmente uma aparência insegura devido à sua constante distração, levando em consideração que o inseguro nunca se distrai.

Confesso que não acreditava na força de nossa paixão, até que ela viajou. Não lembro quais foram os motivos, nem pra onde foi – talvez a casa dos pais. Recordo apenas de pensar nela todos os dias. Motivo que me levou a escrever aquele livrinho. Um misto de paixão e infantilidade. Com um maço de papeis coloridos e lápis de cor, manifestei meus primeiros sintomas de amor.

O resultado disso? O inevitável: o amor eterno; os planos; os filhos; a casa; o gramado; cachorro; gato; férias. Enfim, aquelas projeções que todos, em algum momento da juventude erramos. Não sei se seria necessariamente um erro. Mas aquelas coisas que a gente fala ou faz, sem se dar conta de que não queremos realmente sustentar pelo resto de nossas vidas. Ela me entende bem quando digo isso. Acho.

Por sorte, ela esteve ao meu lado quando mais precisei. Só foi embora depois, quando mandei.

Calma. Está tudo sob controle. Hoje tirei a noite pra tomar meus melhores vinhos.

Ela foi, durante muito tempo, a única pessoa com quem consegui dividir a cama com prazer. A única com quem me preocupei em satisfazer e demonstrar carinho nos breves momentos em que acordava pela madrugada pra arrumar os cobertores. Um abraço por trás e um beijo nas costas eram consentidos com um leve mexer de ombros e ela puxava meu braço, ajustando ainda mais os nossos corpos. Levemente eu passava a mão em suas coxas, desarrepiando-as. “Acho que ainda demora a amanhecer”. Nunca amanheceu. Seu corpo sempre foi meu cúmplice. Com o tempo percebi que nosso diálogo sempre havia sido muito corporal.

Acabou? Tem mais vinho aí ao seu lado, na segunda porta. Isso. Vamos experimentar o Chateau d’yquem. Comprei pelo nome, confesso.

Dia desses tentei a pintar novamente. Numa tela em branco comecei a tracejar seu fino contorno em preto. Seus seios, levemente desencorajados, que conheci com o encaixe perfeito para minhas mãos. Os mamilos rosados deixei pra depois. Sua cintura suavemente fina. Todos os traços firmes, sem vacilo algum. Até que cheguei às pernas. A partir daí não pude fazer nada além de espirais. Espiral sobre espiral, como um emaranhado impossível de compreender se fecha ou abre.

Belos seios sem mamilos, uma silhueta vazia sobre um emaranhado indefinido. Foi tudo o que consegui retratar dela, mas não pude guardar. Joguei em algum canto, onde um dia eu possa achar acidentalmente.

Não me sinto bem. Preciso dormir. Pode levar a garrafa. Não quero como resquícios de uma noite apenas os lençóis sujos que aumentam a conta na lavanderia; acordar e lamentar por existir uma realidade à qual estou condenado a viver assim que abrir os olhos e perceber uma estranha ao meu lado.

Ela possuia os únicos olhos que me diziam todos os dias que retornariam ao meu corpo o quanto antes. Já não sei mais dela. Já não sei mais de seu corpo.

“Tá. Agora chega. Você sabe que eu detesto essa sua falsa ironia de me tratar pela terceira pessoa, como se eu não estivesse aqui. Você pode, por favor, falar diretamente a mim?”

Desaprendi a lidar com isso…

“Mas eu estou aqui!”

Não. O seu aqui, pra mim, é lá.
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Distante das Linhas de Nazca 0 1277

Thiago Orlando Monteiro

Alguns vazios aumentam sempre que tentamos preenchê-los. E geralmente, porque tentamos preencher com algo que não nos cabe, ou no mínimo não nos pertence.

Não há muito que se ver aqui em cima. Menos ainda há o que se orgulhar. O cinzeiro está transbordando de cigarros. Por cima da mesa são quatro maços vazios e mais um pela metade. Tem outro vazio que não dá pra ver, embaixo do sofá, mas isso é sobre outro dia. As latinhas de cerveja entulhavam a mesa de centro até agora pouco, agora só restam sete, as outras estão sobre a pia. São quatro e meia da manhã, não há mais tempo de se arrepender de nada.

O fluxo de ideias vem numa vertente capaz de mudar o curso de um rio. São dois furacões que espalham tudo o que acabaram de criar. Instantes após o caos a calmaria tenta se fazer presente. Mas não. Esse tipo de sentimento não é bem-vindo, não agora. O cartão de crédito transforma a pequena montanha em linhas. Tudo começa novamente. E só acaba um grama depois.

Nossos impulsos ruem nossa integridade. E como costuma acontecer, ruínas geram ruínas.

O nascimento do sol enfim consegue barrar o curso desse desastre natural. A sensatez, rara nessas condições, permite que três latas de cerveja descansem na porta da geladeira. Um banho quente ajuda a relaxar o corpo. Mas agora, nada é capaz de parar a mente. Já debaixo do lençol o coração bate como uma britadeira. O medo da vida toma conta outra vez. É curioso como tudo sempre lembra o seu contrário. Minha maior vontade era de não estar aqui. Perto de tudo o que me corrói e tão distante das linhas de Nazca.

Escrito pelo Gabriel Protski

Ilustrado pelo Tho

Carta a Hunter S. Thompson 0 1213

A temporada de futebol americano ainda não acabou. Ainda faltam bombas. Faltam andanças. Faltam confusões. Ainda falta muita diversão. Que venham mais 67. Mais 17. Que apenas venham. Mesmo que doa. Mesmo que canse. Mesmo que seja obrigado a conviver com o gosto de cloro. Talvez isso não seja plano para mais ninguém. Não importa. Que sigam os jogos, a temporada está só começando.

 


 

Carta de suicídio de Hunter S. Thompson:

“A temporada de futebol americano acabou.

Chega de jogos. Chega de bombas. Chega de andanças. Chega de natação. 67 anos. São 17 acima dos 50. 17 mais dos que necessitava ou queria. Aborrecido. Sempre grunhindo. Isso não é plano, para ninguém. 67. Estás ficando avarento. Mostra tua idade. Relaxe. Não doerá”

 


 

Gabriel Protski