
Essa nossa vida gosta mesmo de um romance, né moço? Lembro como se fosse ontem da última viagem que fiz com o meu velhinho. Era um mês de maio bonito, com as folhas caindo para anunciar o outono, e nós achamos que conhecer Buenos Aires seria uma boa comemoração para os nossos 58 anos de casados. Sabe, o Bernardo, o meu velhinho, conseguia fazer até mesmo uma ida à panificadora ficar mais interessante, e sugeriu que fôssemos em segredo, sem contar a ninguém. “Igual fazíamos naquela época…”, ele disse. E eu aceitei. Eu sempre aceitava.
A verdade é que “naquele tempo” ainda tínhamos alguém de quem fugir, mas depois que envelhecemos acabamos sendo a família um do outro. Nossos poucos amigos se foram antes de nós, não tínhamos irmãos e nunca conseguimos ter filhos. Não que não tivéssemos tentado, porque com a energia que ele tinha ficávamos dias e dias sem sair do quarto. Também éramos muito saudáveis (ele comia um limão todos os dias em jejum, pra renovar as vitaminas) mas aconteceu de nunca acontecer. Sabe como é a vida, não adianta ficar forçando as coisas, né? Um dia, quando ele percebeu que aquilo estava me deixando deprimida, voltou mais cedo do trabalho com um buquê de rosas brancas, uma caixa do meu chocolate preferido, e falou que o nosso amor era igual àquele chocolate: tão grande e tão gostoso, que provavelmente deveríamos guardar só pra nós dois. Devia mesmo ser verdade, e eu acreditei. Eu sempre acreditava.
Que que eu tava falando mesmo? Ah sim… nosso vôo fez uma conexão no Uruguai – é conexão que se fala, né? – e o vôo para Buenos Aires atrasou por causa de uma bendita chuva. Eu estava cansada do vôo anterior, e aquelas cadeiras duras do aeroporto estavam me matando! Ele falou que eu não precisava me preocupar, que era pra eu ficar ali esperando enquanto ele ia descobrir o que estava acontecendo. E eu fiquei. Eu sempre ficava.
É incrível, moço. Você passa 50, 60 anos ao lado de uma pessoa, ela sai por 5 minutos pra ir ao banheiro e você já sente saudades. É como se o amor fosse tão urgente, que todo o resto pudesse esperar. E enquanto meu Bernardinho tentava descobrir quando que a gente ia sair daquele aeroporto-país, eu fiquei ali esperando, tentando confortar os meus 75 anos naquela cadeira mais dura que rapadura amanhecida. Ele jurou que não levou mais de 10 minutinhos, mas pra mim demorou mais tempo que a viagem inteira. No início eu achei que ele tivesse parado pra tomar uma água, ou não estivesse entendendo o que as pessoas estavam falando, porque lá embaixo só o Brasil que fala português. Os vizinhos todos falam um espanhol indígena meio arrastado. Mas ele começou a demorar mais, e mais, e você sabe como é a imaginação. A gente sempre pensa no pior. Comecei a imaginar que ele tivesse passado mal, caído em cima das garrafas de whisky caro, tido um ataque do coração, ou valha-me Deus o que mais poderia ter acontecido. Tinha um casal novinho, novinho sentado ao meu lado esperando o mesmo vôo, e percebeu a minha preocupação. Eles tentaram me acalmar, falando que se tivesse acontecido alguma coisa com ele teriam avisado no microfone. É por isso que essa juventude de hoje está estragada, eles acham que está sempre tudo bem. Mas o meu velho poderia ter morrido e eu nem ficaria sabendo, moço! Não era pra ficar preocupada? É o homem da minha vida, eu me preocupei. Eu sempre me preocupava.
Depois disso vi ao longe um homem de cabelos brancos, óculos antigo, jaqueta marrom, calça social, olhando para todos os lados sorrindo e andando meio arqueado, com as mãos cruzadas pra trás – ele dizia que era porque o coração dele era muito grande, então tinha que balancear o peso com as mãos. Aiai meu velhinho… – você tem um lenço aí, moço? Obrigada. As cataratas dificultaram um pouco pra ter certeza que era ele, mas era. E quando eu tive certeza, não sabia se ficava mais aliviada por ele estar bem ou brava pela demora, até que ele chegou dizendo “Amorzinho, o avião vai atrasar mais um pouco, mas está tudo bem. Eu trouxe um chocolatinho pra te deixar mais feliz.”. Acho que eu vou precisar do lenço de novo, moço. Agradecida. Tem como não se emocionar com um homem que depois de tantas rugas ainda te chama de amorzinho e traz chocolate pra ver você sorrir? Eu me emociono. Eu sempre me emocionei.
Algumas semanas depois de voltarmos da viagem o coração dele parou mesmo, e eu entreguei meu velhinho pra Nossa Senhora cuidar até eu chegar lá. Eu fiquei meses sem sair de casa, e estes 3 últimos anos duraram mais que uma vida, até que eu percebi que teria que reaprender a viver. Sabe, tudo de novo? Reaprender a pegar as cartas, a ir comprar pão, a sair na rua sozinha, a ligar a televisão no horário da novela, e a comprar o meu chocolatinho. E a cada vez que eu fazia isso, podia jurar que escutava ele falando “Parabéns, amorzinho” no meu ouvido, como ele sempre fazia. A verdade é que a gente nem percebe o quanto depende de uma pessoa. O meu Bernardinho me ensinou a ver a vida de um jeito mais encantador, mesmo depois de não estar mais aqui. E é por isso que eu estou indo levar as cinzas dele pra jogar em Paris, a cidade mais romântica do mundo. Ele merece, né? Ele sempre mereceu.
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Ô moço, agora é você quem está precisando do lenço. Toma aqui. Obrigada, viu?
André Petrini.
Foto: nunodantas / cc
Meu novo texto favorito no mundo. Parabéns por esse show Petrinii! =)
Maravilhoso a forma que escrevera, conseguia ver cada momento acontecendo a minha frente.