Marco Antonio Santos
– É meio simples, na real. É dó na sexta corda, mi na terceira, lá na segunda e dó de novo, mas na primeira.
E é isso. E daí muda, e vira esse outro aqui. Tá vendo o desenho?
(pausa de quatro segundos e alguns milésimos)
Oh. Tá prestando atenção?
– Tô sim.
– Tá o que? Prestando atenção aqui ou na TV?
– Nos dois.
– Não dá, cara. Se você quiser ver TV eu paro de mostrar isso aqui.
– Tá.
Eu tô com a cabeça meio voando, na verdade. Sabe o futebol?
– De terça?
– É.
– O que que tem?
– Então. Diz que essa semana não vai ter.
– Ah, beleza. Eu não ia poder jogar, também.
– Pois é. Acho que foi por isso que cancelaram. Mas sei lá.
– Tá.
Naquela manhã, todos os assuntos foram amenos.
Durante a tarde, gastei alguns minutos tentando formular uma piada ou um conceito. Já não lembro do raciocínio completo, por duas razões. Primeiro, porque não anotei a anedota. Segundo, porque quando terminei de pensar, percebi que ela não era tão legal assim.
De qualquer forma, era mais ou menos assim que a coisa ia.
Era alguma coisa sobre o trajeto profissional de um cara dentro de uma empresa. Tipo ascensão e queda. Nessa empresa as pessoas trabalham de terno e gravata, ou tailleur, essas coisas. O que eles produzem ou vendem não importa. O cara é um funcionário médio, e nem é do alto escalão nem nada, mas é escolhido pela diretoria pra virar o novo presidente da companhia, por alguma razão que ninguém tem muita certeza, e ninguém também tem coragem de perguntar mais abertamente. Aí fica aquele burburinho pelos corredores. Aquele clima desagradável, e tal. Agora, o cara em si nem percebe, porque ele é meio desligadão, e não tem tato ou habilidades sociais tão bem desenvolvidas pra se ligar nesse tipo de coisa. O cara é um pária. Todos os outros funcionários ficam desconfiados, porque o cara nem era tão bom assim nas coisinhas que fazia, e obviamente não tem preparo à altura de um cargo tão alto. E tem também o grande lance, que na verdade é o grande lance de todas as atividades humanas, que é a questão do ego. Os de alguns dos que também queriam aquele cargo, mais especificamente. Eles ficam meio de birra com o cara, e sei lá mais o que. Inveja. É coisa de idiota. Mas existe. Todo mundo sabe. No primeiro dia de trabalho do novo presidente como presidente, e não só mais como “o rapaz que senta ali”, ele chega mais ou menos uma hora e quinze atrasado. Até telefonam pra ele, e tudo, mas ele diz que está preso no trânsito. É mentira. Ele estava dormindo. Sabe quando alguém telefona pra você de manhã, e você quer fingir que já estava desperto há muito tempo, e fala com a voz firme, e esse tipo de coisa? Então. É assim que ele faz. Mas todo mundo no escritório fica esperando o cara numa atitude estranha, ferina. Quando ele chega, começa a pedir desculpas pro pessoal, dando aqueles sorrisinhos de canto de boca, que não convencem ninguém, e que nunca fizeram ninguém parecer especialmente agradável ou simpático. Mas ele dá. E os funcionários se olham de forma estranha, como se reprovassem o novo chefe em silêncio, e até o volume dos “bom dia” é baixinho, e um cara que é um pouco mais próximo do novo presidente resolve lançar um “Bom dia não. É boa tarde, né, meu camarada?”. O novo presidente parece meio embaraçado, meio ofendido. Completamente perdido. É estranho.
O fato é que eu tenho que trabalhar um pouco melhor isso. A brincadeira tratava da inadequação do sujeito num ambiente que já era um tanto hostil antes, e agora vai ficar muito mais. Até a moça que, entre outras coisas, faz o cafezinho na empresa faz questão de desprezar a autoridade do cara. Ela finge que não é informada sobre as reuniões entre ele e a diretoria, pra fazer ele parecer irresponsável quando não serve nada pros convidados. A brincadeira não era nem sobre as situações. Era sobre o clima nesse lugar.
Existem ideias que movem, e outras ideias que param.
Essa moveu meus pensamentos por alguns minutos.
Mas ideias mais bobas que esta já moveram muitas horas da minha vida em outros tempos e em outras circunstâncias.
Durante a tarde os assuntos também foram amenos.
Houve certa confusão quanto à nossa decisão sobre o que almoçar. Não tínhamos muito dinheiro, como quase nunca temos, mas estávamos tentados a comer fora. Depois de uma conversa, evitamos este equívoco e cozinhamos um espaguete com molho vermelho (do jeito mais genérico possível), com uma salada de tomates e alface para acompanhar, e uns bifes de alguma carne barata. Acho que era patinho, ou alguma coisa assim. Não faz tanta diferença. Tomamos caipirinha e umas cervejas. Sempre temos dinheiro para o que não presta.
Saímos à noite. Fomos a um bar, depois para outro, e depois para outro, mas por este terceiro apenas passamos para buscar um casal de amigos. A noite prometia, ou pelo menos parecia que sim. A verdade é que me esforço para pensar que elas sempre prometem. Acho uma pena que quase nunca cumpram. Os assuntos eram amenos, mais uma vez, mas naquele momento e naquele contexto fazia sentido não falar de coisas sérias. A gente queria se divertir. Estávamos todos bêbados. Entramos numa balada. Dançamos. Bebemos mais. Alguém chorou no balcão. Acho que fui eu, de forma disfarçada, enquanto olhava para o chão fingindo que estava procurando alguma coisa, escondendo os olhos e pensando, pensando, pensando. Ou talvez tenha acontecido em uma das vezes em que fui ao banheiro, aí tranquei a porta, olhei para a pessoa no espelho, não gostei do que vi e comecei a pensar, pensar, pensar. Enfim. Não tenho certeza de que era eu chorando. E como não tenho certeza se fui eu, não me estendo sobre o tema. Alguém passou mal. Não lembro se era algum dos meus amigos. Acho que não. O casal brigou em alguma altura, e voltaram a se entender pouco depois. Alguém perdeu o telefone celular na pista de dança. Não fez diferença alguma para mim. Na hora de ir embora, me postei na fila para pagar minha conta e reparei que dois homens começaram a brigar ali por perto. Todo mundo virou para acompanhar. Aproveitei a brecha e cheguei antes de todos à área dos caixas. (acho até que vi seus olhos). O cara com quem divido casa e contas me avisou de que estava saindo também, então o esperei do lado de fora. Não vi o casal de amigos em mais nenhum momento naquela noite.
Voltamos para casa. Este foi um sábado qualquer. Ou sexta. De sexta pra sábado, ou de sábado pra domingo. Tudo é anestesia e ilusão. Ou não. Talvez eu esteja sendo injusto, porque afinal de contas este é o tipo de risco que a gente sempre corre, o tempo inteiro. Sobretudo quando falamos. Porque tendemos a achar o que pensamos correto, então não gastamos muito tempo com julgamentos morais sobre nossos próprios pensamentos. Não precisamos arcar com as consequências do que pensamos. Mas precisamos arcar com as consequências do que falamos. Sei lá. Não sei por que toquei no assunto. A gente sempre corre o risco de parecer bobo. A gente sempre corre o risco de parecer limitado. A gente sempre corre o risco de ser atropelado, se não prestarmos atenção na hora de atravessar a rua, ou se estivermos trocando de música no nosso aparelho de mp3 no momento errado. Agora é só assim que se ouve música. Mp3 player, telefone celular, esse tipo de coisa. Uma hora dessas vou me deter a pensar melhor sobre essa coisa de ouvir música de forma personalizada, nesse modo em que escolhemos nossas listas de reprodução e desprezamos a grande gama de informação que…enfim. Vou pensar nisso, e nas consequências positivas e negativas disso. Mas outro dia. Ou outro mês. Tenho que começar pensando se faz algum sentido gastar tempo e energia com isso. Ou com qualquer coisa.
Meu companheiro de casa arranjou um emprego novo. Ele começa em breve. Vai ganhar mais dinheiro que no emprego anterior, fazendo uma coisa que já sabe fazer muito bem. Parece bom. Espero que seja. A namorada dele vai voltar a morar aqui. Ele parece feliz com isso, apesar de ela ser meio louca. Claro que não posso afirmar isso, mas ele parece feliz mesmo. E ela parece louca mesmo. A minha namorada não vai voltar a morar aqui. As contas têm vindo mais caras nos últimos meses. Isso é pensar de forma utilitarista. Mas eu não preciso pedir desculpas pelo que penso. Talvez precise pedir desculpas por compartilhar o que eu penso. Nesse caso, aqui está o pedido: desculpa.
Que seja.
Admito a hipótese de que a vida seja, de fato, uma experiência alucinante. Só acho uma pena que este feliz acidente não tenha ocorrido com a minha. Acho que um meteoro vai cair aqui, mas não tenho certeza do motivo de pensar assim. Talvez eu apenas queira que ele caia. Ou que seja uma turbina de avião, que nem naquele filme do rapaz que é sonâmbulo e está dormindo num parque lindo quando uma turbina de avião cai no quarto dele, e depois ele começa a conversar com um coelho enorme que tem uma voz muito assustadora e que fala pra ele que o mundo está para acabar, e o jovem sabe que é verdade, de alguma forma. Está aí. Eu apenas acho que um meteoro vai cair aqui.
Não consegui ensinar a música pro cara que mora comigo. Ele não mostrou muita vontade de aprender, de qualquer forma. O que é curioso, já que ficou me enchendo o saco durante vários dias para que eu gastasse algumas horas mostrando os movimentos tanto da mão esquerda quanto da mão direita. De qualquer forma, ele gosta dessa progressão de acordes. Eu também. Mas sou suspeito.