Um possível presente 0 732

por Rafael

Desta vez, a falta de sono era devido à aflição causada pelo forte vento que fazia sua casa assobiar madrugada a dentro, somada à angústia de nada poder fazer para retomar o caminho ao lado do coração de Mariana.

Era muito mais pela angústia do que pela aflição, mas aqui eu conto a versão mais próxima da sinceridade que algum dia Ventura chegaria ao se confessar a alguém.

Era noite, era frio, era silêncio. O único barulho que se ouvia além dos assobios da casa e das poucas folhas que ainda não haviam cedido ao outono chacoalharem na árvore do quintal, e dos cachorros, que sempre latirão, sempre haverá um cachorro latindo no meio da noite, era o da caneta desesperada com que Ventura imprimia suas angústias no papel.

Na verdade, pensando bem, havia sim bastante barulho. Mas como era noite, era silêncio.

Jamais soube que árvore era aquela, mas quem se importa? Árvores só deixam de ser coadjuvantes quando caem em cima de alguém. Acho que era uma macieira, mas uma macieira que jamais deu frutos. Tão estéril quanto as noites de Ventura sem Mariana.

Ventura passava noites assim, escrevendo a ela,  mais pela necessidade de escrever, que por acreditar que algum dia aquelas palavras chegariam até Mariana. Ele tinha plena noção de que agora cada um existia em espaços e tempos próprios. Podia ser que a vida acostumasse, e assim foi.

Na verdade, Mariana e Ventura jamais estiveram juntos. Mas já estiveram próximos, muito próximos. Numa proximidade daquelas em que a felicidade e o amor latentes explodiriam a qualquer momento e o universo inteiro teria de se reconfigurar para coexistir com o novo, o eterno.

Mas Ventura sabia, mais por desilusão que por experiência, que aquela felicidade haveria também de se tornar um passado, tal e qual seus amores, com exceção dos que inventou. E, desta vez, a felicidade existiu, tão sincera e ingênua quanto uma criança com a cara lambuzada de sorvete.

Outra vez o presente foi mais breve do que parecia ser, o passado cresceu e o futuro permanecia inalcançável. Ventura sabia, tinha a certeza de que nada nessa vida era mais difícil que o amor.

Sufocados por suas individualidades insubordináveis, Mariana e Ventura se viram saindo da estrada em que finalmente não teriam fim. Sempre foram seduzidos pelos campos ao largo das estradas, virgens, sem um caminho pré-estabelecido para trilhar.

Sem perceberem e, em seguida, sem resistirem, foram, cada um pelos seus próprios campos. A partir de então cada um viveu à sua própria maneira o mesmo amor. Sabiam, tinham a certeza de que seus corações teimariam em bater até o último instante.

Desde então, Ventura escreve todas as noites. Todas as noites leva seu coração para encontrar Mariana, através de palavras escritas com a devoção de quem possui um coração que consegue transmitir sentimentos à ponta de cada dedo.

Ventura jamais soube que Mariana não retornará, pois os campos, assim como as estradas, também podem ter um fim.

Sabe onde encontra-la sempre. É a partir de suas memórias ao lado dela que consegue compreender como se tornou o que é. É a partir das sensações que Mariana ainda lhe proporciona o que escreve todas as noites, e é por isso que jamais aprendeu a escrever sem pensar nela.

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Escala de Baumé 0 5052

Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Chegada 0 6550

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, prepare a casa
e meu coração pulou afora
bateu amor por toda a cidade

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Ela está vindo!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, mas levo ainda um pouquinho
e antes de te ter em meus braços
já tenho em todos os sonhos do mundo

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Minha menina vai chegar!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, já não falta mais tanto
e prevendo as noites com você,
me vejo em claro sonhando

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Vou ser pai