
por Murilo
Desculpe-me, Cidinha, por quebrar a sua bacia. Eu espero sinceramente que a senhora se recupere logo da fratura, mas por enquanto tudo que posso fazer é pedir perdão. Talvez você, aí com o quadril todo engessado, acredite que foi um acidente (como aquela vez em que a Paulinha quebrou o braço). Afinal, escorregões acontecem, não é mesmo? Mas a verdade é que o chão da área de serviço estava muito liso naquele dia, mais do que o normal, e foi por isso que você caiu. E sabe, dona Cidinha, o chão não estaria tão liso se não fosse pelo lubrificante WD-40 que eu passei ali na noite anterior.
Calma, Cidinha, não foi nada premeditado, sabe. Com tantos anos de seu bom serviço, por que eu haveria de tramar tal armadilha para a senhora? Não, tudo não passou de um infortúnio, as coisas foram acontecendo. Mas você deve estar se perguntando por que diabos alguém passaria WD-40 no chão. Bem, dona Cidinha, a culpa não foi minha, e sim de uma barata. Isso mesmo, uma maldita barata que apareceu ali na lavanderia naquela noite.
O bicho me provocou, zanzando entre os armários e eletrodomésticos, furtivo em cada quina (e isso me lembra de como foi engraçada aquela vez que eu estava com a Paulinha e ela viu uma barata, mas essa é outra historia). Enfim, para matar o inseto, ocorreu-me pegar o inseticida mais próximo. Sem titubear eu peguei a lata e jorrei o aerossol por tudo. Só quando vi que a barata não morria, é que percebi que o spray não era inseticida coisa nenhuma, mas sim o fatídico lubrificante. Perdão, Cidinha, eu realmente me confundi.
Fosse eu um personagem da Clarice Lispector (que, aliás, a Paulinha tanto gostava), escreveria um livro inteiro sobre minhas introspecções ao matar a barata. Mas não. Eu sou bem menos interessante. A minha única epifania foi perceber que lambuzar o chão com lubrificante foi uma péssima ideia, e a única coisa que consegui escrever foi essa carta de retratação.
A senhora também deve estar se perguntando que tipo de idiota confunde uma lata de inseticida com uma de WD-40. Bem, acontece que eu estava bêbado. Isso mesmo, completamente embriagado. No estado em que eu cheguei em casa, Cidinha, eu não conseguiria diferenciar uma laranja de um limão, não conseguiria diferenciar uma privada de um bidê, e provavelmente já havia demorado vários minutos para conseguir diferenciar a chave do portão da chave da porta (sem falar das chaves do apê da Paulinha, que ainda guardo não sei por que). Enfim, fosse um desodorante ou um laquê de vovozinha, eu teria feito o mesmo, mas infelizmente a primeira lata que encontrei foi de um lubrificante. Bêbado é mesmo uma desgraça. No fim das contas, não matei a barata, mas quase matei a senhora no dia seguinte.
Como eu disse, dona Cidinha, as coisas foram acontecendo. Não é muito usual que eu chegue em casa tão regado de cachaça, sabe, mas é que aquele dia havia sido difícil para mim. Eu tive que beber muito para, como se diz, afogar as mágoas. A realidade às vezes é dura demais, mais dura que o piso da área de serviço.
Acontece que naquele dia eu havia encontrado a Paulinha, lembra dela? Eu ficaria muito feliz em revê-la e toda essa confusão teria sido evitada, se não fosse a maneira que a vi. Ela estava nos braços de outro cara, Cidinha. Disse que era seu mais novo namorado, e já lhe chamava de “meu amor”.
Cidinha, desculpe-me por quebrar a sua bacia. Mas, cá entre nós, isso tem conserto e logo a senhora se recupera. Sabe, difícil mesmo vai ser consertar essa outra coisa quebrada aqui dentro de mim.