Gente de bem não fala esperanto 2 840

Somos o fim da festa e, mais cedo, a alma dela. Somos a garça, o tigre, a serpente e as estrelas. A angústia infindável, o castelo de areia que desaba, a bolsa esquecida na cadeira do bar e a mochila no canto da balada. Somos a caminhada para dentro de um livro / dentro da noite veloz; o posto de gasolina que serve para abastecer veículos de bêbados e as contas bancárias dos frentistas que ganham o benefício do adicional noturno, ainda que este, somado ao salário de sempre, não supra todas as necessidades deles e de suas famílias. Somos a região metropolitana da cidade que nada fala, mas que se falasse pretender-se-ia grande.

Somos donos de cães e cães sem dono. Os jogos pobres de palavras. Até as palavras, sempre pobres. As repetições, as repetições, as repetições, as repetições, as repetições, as repetições, as repetições, as repetições. E o que mais?

Os buracos negros. A terra e a tristeza e os sorrisos e as lágrimas negras (que) caem / saem / doem. Nós somos a rua e seus elos, as esquinas. Nos melhores dias somos o amanhecer. Nos piores, a noite em si, e em ré, fá, e notas de cítaras e harpas sem cordas. Somos as versões techno dos hits radiofônicos do momento, que serão tocados por 98% dos DJ’s na próxima temporada de formaturas, entre “YMCA” do Village People, “We Are The Champions” do Queen, “I’ve Got a Feeling” do Black Eyed Peas e outras canções menos emblemáticas. Somos as meninas dramatizando a letra de “Like a Virgin” da Madonna em algum momento de alguma dessas festas, na altura em que as garrafas de bebidas estão pela metade em quase todas as mesas do salão. Somos os meninos vomitando no banheiro ou fora dele porque beberam demais.

O bumbo, a caixa e qualquer som que eles produzam juntos.

Somos os três seriados de televisão em voga no momento, e todas as relações sociais que eles geram ou alimentam. Os interesses. A conta de água e o aluguel atrasado, o amigo que dorme bem no quarto ao lado, a dupla que anda pelas ruas falando de desembargadores num tom de voz presunçoso e engraçado. Os minutos gastos esperando atendimento da companhia telefônica, ao telefone, aliás. A lâmpada que economiza energia. O refrigerante que é sinônimo de alegria, quando não de felicidade. A felicidade (que não existe). O dedo médio (sempre em riste).

Somos o conhecimento ocidental – que não passa de uma rua sem saída – e o conhecimento oriental – ou: uma viela mal iluminada. Os conceitos vazios que não precedem explicações. A aula-show do cursinho pré-vestibular de algum endinheirado que acredita em perspectivas, e o mochilão pelo exterior que, tomara, alivie-o daquele tipo de culpa que só gente rica sente e jamais admite. Somos os atos dessas pessoas, sobretudo quando elas não conseguem expressar em palavras o porque de fazer o que fazem, seja lá o que for.

Nós somos os ricos e os pobres. Os diretores do banco e os ladrões que estouram o caixa eletrônico e são flagrados de máscara e jaquetas pesadas pela câmera de segurança. Uma dessas jaquetas em alguma lata de lixo cinco minutos depois do registro dessas imagens. A mãe de um dos ladrões perguntando onde está a jaqueta que ela deu de presente para ele.

A saudade e a consciência, que apenas tenta impedir os desavisados de sentir saudade de quem não merece, ou merece, ou… (somos até este julgamento).

A raiva que passa e a raiva que fica. A indiferença, o desprezo, a pachorra, o pastiche.

A derrapada da moto, o capacete do motoboy, a pizza cuja entrega atrasou, o cuspe do pizzaiolo. A fanfarra, o som, o chapéu panamá da turista, a guitarra nova, o mal estar na cultura e fora dela, os hotéis, motéis, quartéis, generais, viscondes, brigadeiros, beijinhos, marechais e decibeis.

A memória. A ultradocumentação das banalidades e a satisfação dos egos dos que praticam esta atitude em nome da exposição da própria (sic) subjetividade.

Os sentidos que guiam pessoas para o caminho das ilusões. A respiração de alguém a quem se queira bem, vivida durante um abraço demorado. Alguém que você ama e alguém que esta pessoa ama mais que a você, que não merece amor. Somos tudo o que amamos e deixamos para trás.

Tanto faz. E muito mais. O brilho do sol. O fundo do mar. O horizonte misterioso. O pote de ouro no fim do arco-íris. O fim do mundo. O homem bem sucedido. A mulher forte. Todos os jovens cheios de planos e potencialidades. As pessoas andando no shopping. As vidas tristes. O silêncio do suicida. A calada da noite. As horas gastas olhando para o teto. Isso tudo mais todas as outras imagens comuns, sempre evitáveis mas raramente evitadas.

Os discursos empolados.

A penúltima linha, cansada.

A última linha, resoluta.

Marco Antonio Santos

Previous ArticleNext Article

2 Comments

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Escala de Baumé 0 5052

Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Chegada 0 6550

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, prepare a casa
e meu coração pulou afora
bateu amor por toda a cidade

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Ela está vindo!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, mas levo ainda um pouquinho
e antes de te ter em meus braços
já tenho em todos os sonhos do mundo

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Minha menina vai chegar!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, já não falta mais tanto
e prevendo as noites com você,
me vejo em claro sonhando

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Vou ser pai