
“Meu caríssimo amigo”, começava a carta. Seguia com um “Como vão as coisas por aí? Cá pras bandas de Portugal, tudo vai bem. Muito bem”.
Iniciemos este relato logo com dois parênteses, o primeiro dizendo respeito à carta em si: há anos não recebia cartas. Nunca soube, também, do hábito de João por enviá-las, de forma que me senti genuinamente especial por ser o destinatário desta. O segundo destaque vem para explicar a frase de abertura da remessa. João realmente se julgava erudito, mas essa coisa de “caríssimo amigo” nasceu de uma antiga piada nossa, pois minha companhia custava realmente caro aos meus companheiros, em tempos de bebedeira e desocupação. Eu bebia muito e toda a trupe acabava por arcar com minhas despesas. Vivia desempregado, um pouco pela minha inaptidão natural à labuta, mas, principalmente, pelo consumo desenfreado de álcool, em si. Bebia, faltava, perdia o emprego. Perdia o emprego, saía beber. Naquela época, inventei, sem querer, o sonho de milhares de cientistas pela história – o famigerado moto-perpétuo. Hoje já trabalho e já não bebo.
Bom, à carta.
“Ando me engraçando com várias raparigas por cá, e percebi que gosto de cá estar”, ele prosseguiu. Naquele momento, ainda pela quarta ou quinta linha, começou a me encher o saco a péssima emulação do português lusitano. Mas, ah, como me conhece, o João: logo na sequência, desistiu. “Esse começo foi uma piada, amigo. Não estou pegando ninguém e não sei falar como os portugueses. Aliás, eles pra mim não fazem nenhum sentido”. Relaxei.
Na sequência, uma página e meia de João me contando sua rotina em Castelo Branco. “Estou trabalhando como manobrista num hotel deslumbrante, com uma vista absurda para o mar”, se gabou. Ele conseguiu um emprego como manobrista, mesmo tendo entrado em Portugal com visto de estudante e não sendo habilitado a dirigir legalmente no país. Bom, quem nunca? Eu, sempre – fiz quase isso em Milão, quando forjei uma carta de recomendação brasileira para conseguir um emprego de contador num escritório. E eu também só tinha visto para estudar. Continuou: “Quando quiser vir pra cá, me avisa. Eu consigo um desconto excelente pra você se hospedar aqui”. Uma viagem para uma praia na Europa não seria nada mau, pensei, e decidi dar uma pesquisada mais tarde sobre Castelo Branco.
João passou, então, quase uma página a discorrer sobre as dificuldades do fazer humor no além-mar. “Anteontem fui fazer a piada do ‘como sua bunda no verão, né?’. Ninguém me entendeu. ‘Pois então’, disseram, ‘meu rabo está todo úmido, de fato’. Aí quem riu fui eu. Este povo tem mesmo algumas dificuldades”. Apesar da pretensa erudição, que já mencionei, o homem tinha um enorme repertório de piadas chulas e de duplo sentido. Não costumo ver graça, mas confesso ter esboçado um sorriso gostoso nessa, mais pelo “rabo” que os portugueses usam para “bunda” do que pela piada em si. João explicou que, pra frase fazer sentido, teria que ser “fodo teu rabo no verão, né?”, mas aí o trocadilho não existiria.
Pulou um espaço de três linhas, e as coisas ficaram esquisitas. “Você riu do ‘rabo’, né? Eu conheço você, cara”, prosseguiu. A essa altura eu comecei a ficar ressabiado com os poderes premonitórios do João. Porra, a gente se gostava bastante, mas eu não me lembro dessa intimidade toda. Sério que ele conhecia tanto assim o meu humor? “Relaxa, amigo. Não fica com essa cara de espanto, eu não tô te espiando”, ele disse na carta, e eu juro que nessa hora olhei de canto pro meu laptop, pra ver se a luzinha da webcam estava ligada. Eu estava suando. “Hahahaha. Bom, vou abrir logo o jogo. Eu nem te conheço. Isso é só uma ação conscientizadora sobre os perigos de se expôr na internet”, ele escreveu.
Peraí. Quê?
“Meu nome é Jorge, eu trabalho numa ONG aqui em Curitiba mesmo, e a gente tá enviando essas cartas pra desconhecidos, usando como dados as coisas que descobrimos numa busca rápida pela web”. Aparentemente, os funcionários são treinados para flagrar vários traços da nossa personalidade, usando uns aplicativos que monitoram os grupos de que a gente faz parte, os locais onde a gente trabalha, etc. Fizeram um bom trabalho, visto que detectaram até meu moderado medo de perseguição.
O João era, então, Jorge. OK, eu consigo aceitar. Fiquei um pouco chocado, mas tudo bem. Eu participo de diversos grupos que devem dizer algo sobre mim, eu pensei, mas como foi que eles descobriram onde eu moro?, eu me perguntei. Como se ainda estivesse lendo minha mente, o Jorge respondeu. “Teu endereço deu um pouco mais de trabalho e eu não posso explicar exatamente, mas digamos que temos alguns contatos que mensuram os dados do cartão Renner™”.
Ele terminou a carta com um “Tome mais cuidado com os seus dados pessoais, rapaz. Se quiser (e puder) colaborar com esse nosso trabalho, segue o número da conta e a agência da ONG. Você pode doar o valor que quiser, e fica fácil pra você transferir, porque é Banco do Brasil”. Jorge resolveu deixar claro que estava de posse de pelo menos algumas das informações que forneci ao banco.
“p.s.: o João não tem absolutamente nada a ver com isso“, e então fui logo às redes sociais fazer algumas perguntinhas para o João, porque ele devia estar envolvido nessa grande palhaçada. Assim que abri o perfil pessoal do meu amigo, percebi que já estava de volta ao Brasil. “Voltou de Coimbra”, dizia uma marcação. Não pesquisaram a cidade praonde ele foi, mas eu caí mesmo assim. João aparentemente não tinha culpa e a postagem já tinha seis meses de existência, o que me levou a pensar que devo marcar um café com ele qualquer dia desses.
Pra tentar me acalmar, dei um ctrl+T, digitei “castelo branco portugal”, apertei enter.
…
Rapaz, Castelo Branco nem praia tem.
por Rômulo Candal.
(a imagem é um mapa encontrado na internet)
Adorei!!!!!!!!!!!
Que massa! Obrigado por ler! 🙂
Cara, fiquei com o rabo suado. De tanto rir.
(Essa é uma expressão lusitana).