Retrato do artista quando praticante do equívoco 0 1026

Não importa quem esteja jogando, futebol sempre vai me trazer a imagem do meu pai. Quando é jogo do Coxa, sua imagem além de ganhar uns bons vinte anos de jovialidade, vem acompanhada de um extenso pacote de memórias: desde os gols do Pachequinho, aos os gols que não vi porque estava mais preocupado com o amendoim ou com o sorvete, até a caminhada da João Gualberto para o estádio, passando ao lado do muro pixado do cemitério. Quando assisto a uma partida, presto uma homenagem aos mais de quinhentos jogos que vi com meu pai, e a toda minha infância. Mesmo quando vou ao estádio sozinho, levo meu pai comigo.

Hoje, o cara que senta ao meu lado no trabalho não veio, dizem que é gripe suína. Eu tô com uma tosse chata faz uns dias, mas acredito que não é nada, já estava antes dele adoecer. O jogo começa às oito e meia, minha aula vai até as nove. Apresento o trabalho antes e vou embora como quem vai tomar água, já vou deixar a mochila perto da porta. A partida é em casa, mas em terreno inimigo, estão trocando o gramado do Couto, vamos jogar em estádio emprestado pelo rival. Que até é simpático, mas não passa disso.

Ao que tudo indica, Curitiba planeja entrar em alguma bíblia moderna ao tentar reproduzir o dilúvio, iniciando-o uma hora antes da aula. O guarda-chuva não suporta nem a caminhada até o ônibus, em dez segundos não me resta um fio de cabelo seco. Os pés encharcados, a aula arrastada, o plano de fugir frustrado. A professora sentou ao lado da porta. Entrego minha angústia ao lance-a-lance online, que me confidencia que já vencemos por um a zero. Observo a chuva minguar pela janela. Uso a desculpa dos pés molhados, reforço a ideia com um tossido, alio ao conchavo o argumento que em breve voltará a chover. Sucesso, corro para o estádio.

Pouco depois de descer do ônibus, se reinicia uma garoa. Ao pisar na arquibancada, a chuva volta. Pior, cheguei com o jogo empatado, vi a virada antes do intervalo. Reviro a mochila em busca de algo seco, tem um cachecol que só está um pouco úmido. Com muita imaginação transformo-o num guarda-chuva. Essa busca me fez lembrar que trago um livro do James Joyce na mochila. O início do segundo tempo não me deixa esquecer o quanto sou um idiota por molhar um livro do Joyce. O terceiro gol do adversário obriga-me a rever meu conceito de sanidade. E sim, a chuva apertou e o time continua mal, tal qual meu juízo.

O bandeira marca equivocadamente um impedimento, passo a me entreter mais com a criatividade das ofensas proferidas a ele, que com o jogo. E, ao que parece esse sentimento não me é exclusivo. Alguns sorriem e outros gargalham a cada grito dado. A chuva permanece imóvel. Suspeito que isso é o pátio de um manicômio. A bola para numa poça, um bico pra frente, os zagueiros batem cabeça, nosso atacante faz um lindo gol de canela. Abraço desconhecidos. Cantamos ainda abraços. Somos todos irmãos, ninguém mais se importa com o bandeira. Até a chuva dá uma trégua, alguém acende um baseado, de mão em mão sete fumam. Recebo a ponta de um cara que nunca vi, dou duas bolas e passo pra outro que jamais pensei conhecer.

Meus pés boiam dentro do meu tênis. A fumaça resinada agride meus pulmões. A tosse que andava discreta resolve ser mais presente que o mau futebol. Acho que é gripe suína. Tomara que o time empate antes de eu acordar numa ambulância. Destemida, a chuva volta, se James Joyce ainda fosse vivo, teria morrido afogado. Três minutos de acréscimo, escanteio, até o goleiro foi pra área. O cara ao meu lado me oferece um Dallas vermelho para eu parar de tossir, não entendo a lógica, aceito e fumo. Os zagueiros disputam a bola na área, que explode no travessão. Contra-ataque, três contra dois, o lateral tenta puxar a camisa para fazer uma falta, sem sucesso, gol dos caras.

Metade do público deixa o estádio antes dos três apitos, sofro até o fim. Na falta de quem culpar, alguns voltam a xingar o bandeirinha. Não sei o que pensar sobre a vida, nem quem culpar se eu morrer de gripe suína. Lembro da sequência de mais de vinte vitórias seguidas do time, e de outras em que ele não se saía bem nem no par ou ímpar. Lembro de jogos que não valiam nada em que fui com o meu pai. No fim, nenhum vale. Nunca importou quanto deu o jogo. Não amo minhas recordações pelos resultados, mas pelos lugares em que elas me levam.

 

Gabriel Protski

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Vida comum parte 1 0 5198

Vida comum parte 1

Véspera de feriado, antes da meia-noite e eu já com meia garrafa de conhaque na mente. Curtia me derreter no gole, de dose, de lata, de garrafa, de todo jeito. No feriado rolou um churrascão que nem lembro se comi, dropei umas caipiras antes de acender o fogo e fiquei mais preocupado com a temperatura das garrafas que da carne. Sábado a ressaca com a mão pesada, tava batendo forte, contra-ataquei com uns latão, encostado nos fundos do posto com a rapeize, só flagrando os doidinho tirando uns racha de Parati, Chevette e Gol Chaleira. Domingo rolou rave na região metropolitana, no meio do mato, não virava ir de bonde, botei uma gasolina na Bizz e meti o pé; duas carteiras de Minister depois já tinha descido whisky com energético, vodka com suco, vários ampola, um doce e umas água colorida que os parceiro botaram, sei lá qual fita, puta gosto de remédio. Bati a nave antes da hora, cheguei em Grayskull sem nem aproveitar a viagem, ensaiava falar e não saia voz, tava tenso, me mordendo, fiquei nervoso: deu bad. Tentei endireitar a caminhada tomando umas águas, mas não rolou, a conta não batia, os dentes rangendo, coração agitado querendo se mudar do peito. Precisava voltar pra minha goma, tomar um banho, talvez dois, sei lá, só precisava vazar, montei na moto e fui. Tava com dois IPVA atrasados, cabreiro de cair numa blitz, e se soprasse um bafômetro explodia a máquina – certeza. Queria chegar logo, entrei no modo Valentino Rossi e corri a milhão, como se fosse fuga. Foi aí que deu ruim no piloto automático, se pá que dormi em cima do jato, lembro só de uns clarão, uns flash. Vi o céu por baixo, deitado no asfalto, sei lá qual fita, tudo nublado, que dia bosta. Me liguei e já tava todo remendado no hospital, numa sala com umas vinte cabeça, todo mundo fudido, uns mais outros menos. Eu? Era cabeça de chave do grupo dos desgraçados: com a lata do frankstein, olho roxo, cara inchada, nariz quebrado, uns ponto na testa. Trinquei uma costela e quebrei outras duas, a clavícula rachou e a mão tava na carne viva. O médico foi desenrolando essa lista aí e eu aceitando na moral, os pensamentos embaçados, cheio de analgésico, todo bagunçado de dor. Aí teve uma mão que ele deu uma pausa, ficou mais bolado e mandou A real: disse que eu sofri um choque cabuloso no quadril, perdi mais de 80% do fígado, que num tinha como dizer o tamanho real do estrago, mais uma fita era certa, nunca mais ia poder beber, se tomar meia lata que seja, posso encomendar o caixão. Acordei umas três vezes crente que tava tendo um pesadelo, foquei umas horas que tava numa brisa errada de doce. Mas não. A vida é uma viagem desgraçada.

Dai-me Amor 0 3215

Deus foi a primeira palavra que eu aprendi. Antes mesmo de aprender meu nome. Quando se é criança, os adultos tentam nos ensinar as coisas dos jeitos mais variados. Criança só aprende brincando. Minha mãe mandava eu pintar todos os “Deus” que eu achasse na Bíblia. Ela me disse que Deus sempre existiu e nunca nasceu. Perguntei como Ele se parecia. Ela disse que não sabia, pois a glória dEle é tão grande que era como olhar pro Sol. Tentei olhar pro Sol, ardeu.

Depois de pintar tudo, eu aprendi a palavra Jesus. Ela me disse que Jesus é a encarnação do amor, é quem criou todas as coisas. É filho de Deus com uma humana, Maria. Me disse que tem barba e cabelo grande. E que seu olhar muda e transforma escuridão em luz.

Mais tarde ela me falou pra pintar o “Espírito Santo” e disse que Ele não tem forma, corpo ou manifestação material. Já foi pomba no batismo de Jesus, mas também é descrito como o brilho da Glória de Deus. Ela me explicou que Deus se manifesta na trindade. E que eu podia falar com Ele(s) quando eu quisesse. Bastava orar e, é claro, com todo o respeito. E que quando eu orasse deveria confessar meus erros e pedir perdão. Deveria agradecer pelas dádivas e pela bênção da vida. Que deveria contar sobre meu dia, sobre meus medos, descobertas e felicidades. Foi assim que Jesus se tornou meu melhor amigo. Meu amigo imaginário. Meu Deus. Minha mãe me ensinou um bocado de coisas sobre a Bíblia, o céu e sobre como a vida nessa terra é passageira, é escola, é aprendizado, nada é por acaso, nada é destino. Tudo é providencial. Providência divina. Tudo de bom e tudo de ruim tem como propósito nos ensinar sobre Deus, e como Ele age em nossas vidas. Ela me contou que se eu deixasse, Ele poderia morar dentro do meu coração, e assim, o divino habitaria em mim. Disse também, que Jesus vai voltar pra levar os justos pro céu. Perguntei como eu fazia pra ir pro céu, ela me disse que imitando a Jesus, O aceitando como meu Deus e salvador, sua Graça me salvaria independente das obras. Me ensinou que só a religião dela era a correta e junto com essa religião muitas regrinhas, que eu nunca consegui seguir. Por muito tempo achei que por causa da parte que eu não cumpria, Deus não habitava em mim. Me senti perdida, vazia. Comecei a me odiar. Acelerar minha morte. A vida muitas vezes deixa de fazer sentido. Acontece que eu sou muito como Tomé, só acredito vendo. E como acreditar em alguém que eu só ouvi falar e que ninguém nunca viu? Com nove anos veio a primeira dúvida sobre a volta de Jesus. Junto com a dúvida veio a primeira vez que senti Deus falando comigo. Foi diferente de pensar. Foi quase como ouvir palavras que não foram pensadas. Eu ouvi: “Não desista, porque Eu não desisti de você”. Depois desse episódio nunca mais ouvi ele nos meus pensamentos, achei que era coisa de criança ter amigos imaginários, mas vira e mexe alguém usado por Ele me lembrava sobre não desistir de conhecê-Lo e procurá-Lo. E nessa eu vi que Ele não estava na religião. Não estava em uma igreja específica, não era o “não pode” tão popular. Compreendi o que significava Graça e aceitei a minha salvação. Aceitei a trindade e aceitei a minha mãe. Compreendi que amar nada tem haver com sexo ou paixão. Amor transcende toda essa metáfora feita de carbono que chamamos de realidade. Aceitei meu corpo, que foi presente de Deus pro meu espírito habitar. Espírito esse que saiu dEle.

A segunda vez que Deus falou comigo eu já não era mais criança, foi quando percebi que Deus não é religião e um bocado de regrinhas. Ele está onde há luz. E Ele deixou luz em tudo. Tomei um chá com Ele. Meu espírito saiu do corpo e subiu. Contemplei a Glória divina e senti meu espírito ir alto e mais alto. Eu vi a Deus e diferente do que minha mãe dizia, é como olhar pro Sol, mas os olhos não ardem. E Ele me disse: você é um anjo. Você é luz! Você está pronta!

Mateus 5:8 “Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus.”