
Não importa quem esteja jogando, futebol sempre vai me trazer a imagem do meu pai. Quando é jogo do Coxa, sua imagem além de ganhar uns bons vinte anos de jovialidade, vem acompanhada de um extenso pacote de memórias: desde os gols do Pachequinho, aos os gols que não vi porque estava mais preocupado com o amendoim ou com o sorvete, até a caminhada da João Gualberto para o estádio, passando ao lado do muro pixado do cemitério. Quando assisto a uma partida, presto uma homenagem aos mais de quinhentos jogos que vi com meu pai, e a toda minha infância. Mesmo quando vou ao estádio sozinho, levo meu pai comigo.
Hoje, o cara que senta ao meu lado no trabalho não veio, dizem que é gripe suína. Eu tô com uma tosse chata faz uns dias, mas acredito que não é nada, já estava antes dele adoecer. O jogo começa às oito e meia, minha aula vai até as nove. Apresento o trabalho antes e vou embora como quem vai tomar água, já vou deixar a mochila perto da porta. A partida é em casa, mas em terreno inimigo, estão trocando o gramado do Couto, vamos jogar em estádio emprestado pelo rival. Que até é simpático, mas não passa disso.
Ao que tudo indica, Curitiba planeja entrar em alguma bíblia moderna ao tentar reproduzir o dilúvio, iniciando-o uma hora antes da aula. O guarda-chuva não suporta nem a caminhada até o ônibus, em dez segundos não me resta um fio de cabelo seco. Os pés encharcados, a aula arrastada, o plano de fugir frustrado. A professora sentou ao lado da porta. Entrego minha angústia ao lance-a-lance online, que me confidencia que já vencemos por um a zero. Observo a chuva minguar pela janela. Uso a desculpa dos pés molhados, reforço a ideia com um tossido, alio ao conchavo o argumento que em breve voltará a chover. Sucesso, corro para o estádio.
Pouco depois de descer do ônibus, se reinicia uma garoa. Ao pisar na arquibancada, a chuva volta. Pior, cheguei com o jogo empatado, vi a virada antes do intervalo. Reviro a mochila em busca de algo seco, tem um cachecol que só está um pouco úmido. Com muita imaginação transformo-o num guarda-chuva. Essa busca me fez lembrar que trago um livro do James Joyce na mochila. O início do segundo tempo não me deixa esquecer o quanto sou um idiota por molhar um livro do Joyce. O terceiro gol do adversário obriga-me a rever meu conceito de sanidade. E sim, a chuva apertou e o time continua mal, tal qual meu juízo.
O bandeira marca equivocadamente um impedimento, passo a me entreter mais com a criatividade das ofensas proferidas a ele, que com o jogo. E, ao que parece esse sentimento não me é exclusivo. Alguns sorriem e outros gargalham a cada grito dado. A chuva permanece imóvel. Suspeito que isso é o pátio de um manicômio. A bola para numa poça, um bico pra frente, os zagueiros batem cabeça, nosso atacante faz um lindo gol de canela. Abraço desconhecidos. Cantamos ainda abraços. Somos todos irmãos, ninguém mais se importa com o bandeira. Até a chuva dá uma trégua, alguém acende um baseado, de mão em mão sete fumam. Recebo a ponta de um cara que nunca vi, dou duas bolas e passo pra outro que jamais pensei conhecer.
Meus pés boiam dentro do meu tênis. A fumaça resinada agride meus pulmões. A tosse que andava discreta resolve ser mais presente que o mau futebol. Acho que é gripe suína. Tomara que o time empate antes de eu acordar numa ambulância. Destemida, a chuva volta, se James Joyce ainda fosse vivo, teria morrido afogado. Três minutos de acréscimo, escanteio, até o goleiro foi pra área. O cara ao meu lado me oferece um Dallas vermelho para eu parar de tossir, não entendo a lógica, aceito e fumo. Os zagueiros disputam a bola na área, que explode no travessão. Contra-ataque, três contra dois, o lateral tenta puxar a camisa para fazer uma falta, sem sucesso, gol dos caras.
Metade do público deixa o estádio antes dos três apitos, sofro até o fim. Na falta de quem culpar, alguns voltam a xingar o bandeirinha. Não sei o que pensar sobre a vida, nem quem culpar se eu morrer de gripe suína. Lembro da sequência de mais de vinte vitórias seguidas do time, e de outras em que ele não se saía bem nem no par ou ímpar. Lembro de jogos que não valiam nada em que fui com o meu pai. No fim, nenhum vale. Nunca importou quanto deu o jogo. Não amo minhas recordações pelos resultados, mas pelos lugares em que elas me levam.
Gabriel Protski