
De tempos em tempos observo a menina do prédio em frente, quando se dobra a fumar na janela do quinto andar. É sempre à noite, vejo pouco mais que a silhueta e o ponto luminoso da brasa.
Ela olha para baixo, assim como quem contempla o vento, como quem faz do fumo apenas um aperitivo para o frescor da noite.
Penso que eu queria ser aquele cigarro, entre seus dedos e lábios, os dois melhores lugares do mundo. E a desenho num rascunho platônico de paixão, sem ousar interromper aquele momento, o derradeiro careta das onze.
Quando percebo-me, estou a ensaiar abordagens ridículas, dessas que sou especialista. Apanharia também um cigarro para gritar Ei, você, é, você mesma, você tem fogo?
Assim, como um idiota, como se não houvesse um vão de dez metros de comprimento e quinze de altura a nos separar. Como se não houvesse um vão ainda maior, o guia politicamente correto das relações humanas e primeiras impressões.
Penso num dia a gente se encontrar por acaso, cada um saindo de seu prédio. Você é a menina que fuma na janela, não é? Sim, sou eu. Pô, eu te achei linda. Ah, pode crer… eu nunca te vi.
Teríamos algo mais em comum? Eu esticava a orelha entre o ruído de um carro e outro. Imaginava-me a gritar Ei, o que está ouvindo aí? E ela diria Sounds of Washing Machine, e eu Meu Deus, adoro esse som, mas prefiro o Bed Bangs on the Wall.
E, assim, revelado meu entusiamo, findariam minhas chances. Sabe-se que existe uma linha tênue entre estas duas coisas que elas não gostam: homem desinteressado e homem interessado demais.
Que livros em sua estante, que discos em sua vitrola, que filmes? Isso importa? Chega a ser bobo: a gente gosta de quem gosta das coisas que a gente gosta, mas não gosta de quem gosta das coisas que a gente é.
Pego também meu paiero. Encosto-me na janela, enrolo, acendo, puxo e assopro naquela direção. Quem sabe ao menos a fumaça pudesse tocá-la. Mas com o vento se esvai e, antes que eu pudesse terminar o cigarro, ele cai de meus dedos, como se soubesse que deveria pular por mim.
Todo cigarro é, no fundo, uma mini vontade de morrer. É um pedacinho da gente que se joga porque nos falta drama para sucumbirmos inteiros. Antepasto de cinzas à terra.
Tal qual lento suicida, penso que também me apeguei à sua mini vontade de morrer. Como se vislumbrasse no fumo uma brecha, uma coisa mal resolvida que eu estaria ali para sarar. Sinto o privilégio de assistir ao momento na janela. Sem filtros, sem falsas alegrias ou lamentos desmedidos, sem likes, emojis e insossos kkk´s.
Eu só queria juntar minha janela na tua, tua melancolia na minha, pra gente ser feliz. E com dois, a vista mais bonita, o vício da noite e do amanhã.
Mas se já apagastes, meu bem, uma pena. Dia desses avistei outra brasa ali no sétimo andar. Disseram-me que ali o vento bate mais fresco e que a vida se consome na brevidade da palha.
Murilo.
Crédito Foto:riccardo.fissore Flickr via Compfight cc
Tão bem escrito…
tão bem descrito…
Tão melancólico…
Tão misantrópico…