Um lance 0 1212

Ricardo não soube reagir quando ouviu da garota à sua frente que devia ser tão velho quanto os pais dela, então sorriu sem mostrar os dentes, meio envergonhado pela falta de palavras e meio feliz de se ver atracado com uma novinha, e mudou de assunto, de idades para repelente de insetos. “Você tem antimosquito, bebê?”, dissimulou. “Não, mas fique susse que meus pais devem ter, na praia eles têm tudo”. “Gente velha não fala susse, gatinha”. “Aí o problema é meu ou de vocês?”

Sara tinha acabado de virar maior de idade e programado para si, com anuência dos genitores, uma pausa estratégica no frenesi tradicional da idade, substituindo o eventual começo de algum curso universitário por outros dois menos formais, ainda que também potencialmente profissionalizantes: um de fotografia e outro de cozinha – este principal, possível prenúncio de um de chef, mais cheio de pompa. A viagem ao litoral marcava a comemoração do que a família convencionou chamar de começo da vida adulta da menina, quando ela passaria a se responsabilizar pela condução dos próprios caminhos, e ela queria aproveitar junto ao gato grisalho e misterioso que conheceu em um baile de formatura de amigas de outra escola. Mas nada sério entre eles. Um lance sendo um lance.

Na primeira vez em que o viu, ele estava indo para lá em um trenzinho dançante que cortava o salão de festas. “No paren la fiesta, don’t stop the paaaaaaaarty” bombando nos falantes. Na volta, ele já estava sem paletó e com a gravata na testa. Ela gritou “vem, Capitão Codorna” com uma mão em concha na direção do alvo, com o tronco inclinado, decote à vista e sorriso aberto. Ele não entendeu se era com ele ou com seu sobrinho, logo atrás, mas prestou atenção e animou-se com a persistência do olhar que o seguia. Estragou a brincadeira e descarrilhou rumo à boca da menina, drinque Alexander na mão que não lhe servia de caixa amplificadora. Perguntou “o que você falou?”, começaram a trocar ideia aos gritos e, em busca de um lugar mais reservado, encontraram o fumódromo. Ignoraram que nenhum dos dois suportava sequer o cheiro de cigarro e se agarraram ali mesmo, entortando os olhares dos adultos no ambiente. A cochicharia em torno do casal recém-formado começou a se misturar à nuvem de fumaça, mas eles não conseguiam estar menos aí para isso, porque com ocupações mais imediatas. O sobrinho apareceu e quebrou o clima, mas se alegrou de ter perdido o tio festeiro sob aquela condição, desde que o fanfarrão o levasse embora mais tarde.

Na descida ao litoral, ela fez questão de dirigir e escolher a trilha sonora. O carro era dela e ali sua vontade prevalecia. Fora que não aguentava os apegos nostálgicos dele, que veio com uns papos de Raimundos das antigas, Elton John e Prince que lhe pareciam absolutamente desinteressantes e dispensáveis. Ele que se arranjasse para curtir Cage The Elephant, Céu, O Terno e não sabia lá mais quem enquanto admirava a serra do mar, em uma manhã de sábado com serração que devia descambar em sol forte quando estivessem mais perto de chegar no destino, pouco antes da hora do almoço. Ricardo disse que suportaria o mau gosto dela porque eram só duas horinhas e pouco de descida, e que depois pegava o violão para tocar umas músicas de verdade, e ela disse que suportaria a ofensa dele porque tinha acordado feliz demais para gastar tempo discutindo com o pessoal da ala geriátrica, e o cheiro de mato a impedia de absorver as tonguices que ouvia.

Já na casa de veraneio, em um balneário com imóveis de preços excludentes, cheio de placas de vende-se e aluga-se, Ricardo conheceu os pais da ficante, Beto e Estela, arquitetos de carreira prolífica e sócios em um escritório cheio de notoriedade na capital. Tinham seus trabalhos publicados em revistas do ramo, tanto nas mais sérias, cheias de fotografias conceituais, quanto nas mais meramente comerciais, onde compravam espaços como lhes convinham. Pareciam felizes e confortáveis consigo próprios e entre si. Já depois de passarem protetor 50, com os corpos quase adaptados ao calor do meio dia, o casalzinho foi convidado para colocar os pratos na mesa, à espera do almoço que estava saindo: postas de cação ao forno com alcaparras e molho de requeijão light, batatas gratinadas e salada de camarão, alface, manga e rúcula.

Ricardo entrou na cozinha pedindo talheres, atento ao barulho intermitente da máquina de espremer laranjas operada por Beto. Olhou para a sogra, parada em frente ao fogão do cômodo bem iluminado: uma mulher alta, bonita, de cabelos pretos até a metade do pescoço, com alguns fios brancos enriquecendo a composição, olhos castanhos elegantemente maquiados, o pijama de seda, bom prenúncio de como Sara poderia vir a ser. Olhou também para o sogro, no balcão de eletrodomésticos: um homem dignamente careca de máquina zero, com tribais nos antebraços, pés descalços, as veias das mãos saltadas, mostrando bem definidos alguns músculos que o genro nem conhecia a cada novo uso do equipamento, o olhar fechado, cheio de foco e poder, os ombros largos começando o movimento de amassar as laranjas até não sair mais nada, a força de quem fazia aquilo sempre. Estela disse que os garfos e facas ficavam na primeira gaveta embaixo da pia e os pegadores na de baixo, aí Ricardo recolheu o que devia e aproveitou para falar, mirando o agora quase amigo: “Também tenho uma tatuagem meio assim nas costas”, ao que foi respondido com um sorriso leve, de dentes brancos e incisivos superiores levemente tortos e um “mais tarde mostra pra gente”. Ao final do almoço, Sara se ofereceu para fazer um café, desde que não precisasse lavar a louça que todos sujaram de forma tão apaixonada, agressiva, selvagem.

Após o café, Estela serviu um licor de amêndoas e começou a descrever a quinzena de férias que ela e o esposo aproveitavam. Fecharam um trabalho de redecoração com uma sorveteria local, sem perder negócio nem viagem naquela crise, e mostraram aos pombinhos dois lustres de tetos projetados e montados por eles, em placas de metal retorcido, meio de reciclagem, um destinado à casa da praia de amigos e outro de presente para a filha. Ricardo ficou positivamente impressionado com a afetividade dos anfitriões, ajudou a tirar a mesa e dormiu com Sara até 18h, quando levantaram bem dispostos e saíram sem destino pela orla, fazendo checkpoints alternados entre as biroscas do caminho, cheias de cerveja em lata e máquinas de passar cartão, e em pontos da areia, onde sentavam para assistir o começo da noite, o mar agitado, a bagunça da gente de frente para o oceano.

O domingo começou cedo. Todo mundo de pé às seis e meia, porque Sara queria praticar bodyboard, amor de infância. Os homens protegidos com bonés e regatas, as mulheres de maiôs e chapéus, os quatro de chinelos e óculos escuros, afim de bronze e sal. A leitura que a garota fez do mar os fez fincarem guarda-sol em um ponto de frente para boas ondas, um pouco baixas, ideais para ela brincar depois de tanto tempo sem praticar o esporte preferido. Na água, sentia-se livre. A menina em sua prancha. Estela de volta na calçada, em busca de uma barraca de água de coco. Beto tirou os óculos e voltou o corpo para o genro, que estava com os olhos descobertos e voltados para ele, aguardando, com a cabeça deitada na própria camiseta. Encaravam-se, sorriam-se, observavam-se. Dois minutos, três, não sabiam. Tanto fazia. Estavam sozinhos.

 

Marco Antonio Santos

Previous ArticleNext Article

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Escala de Baumé 0 5074

Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Vida comum parte 1 0 5221

Vida comum parte 1

Véspera de feriado, antes da meia-noite e eu já com meia garrafa de conhaque na mente. Curtia me derreter no gole, de dose, de lata, de garrafa, de todo jeito. No feriado rolou um churrascão que nem lembro se comi, dropei umas caipiras antes de acender o fogo e fiquei mais preocupado com a temperatura das garrafas que da carne. Sábado a ressaca com a mão pesada, tava batendo forte, contra-ataquei com uns latão, encostado nos fundos do posto com a rapeize, só flagrando os doidinho tirando uns racha de Parati, Chevette e Gol Chaleira. Domingo rolou rave na região metropolitana, no meio do mato, não virava ir de bonde, botei uma gasolina na Bizz e meti o pé; duas carteiras de Minister depois já tinha descido whisky com energético, vodka com suco, vários ampola, um doce e umas água colorida que os parceiro botaram, sei lá qual fita, puta gosto de remédio. Bati a nave antes da hora, cheguei em Grayskull sem nem aproveitar a viagem, ensaiava falar e não saia voz, tava tenso, me mordendo, fiquei nervoso: deu bad. Tentei endireitar a caminhada tomando umas águas, mas não rolou, a conta não batia, os dentes rangendo, coração agitado querendo se mudar do peito. Precisava voltar pra minha goma, tomar um banho, talvez dois, sei lá, só precisava vazar, montei na moto e fui. Tava com dois IPVA atrasados, cabreiro de cair numa blitz, e se soprasse um bafômetro explodia a máquina – certeza. Queria chegar logo, entrei no modo Valentino Rossi e corri a milhão, como se fosse fuga. Foi aí que deu ruim no piloto automático, se pá que dormi em cima do jato, lembro só de uns clarão, uns flash. Vi o céu por baixo, deitado no asfalto, sei lá qual fita, tudo nublado, que dia bosta. Me liguei e já tava todo remendado no hospital, numa sala com umas vinte cabeça, todo mundo fudido, uns mais outros menos. Eu? Era cabeça de chave do grupo dos desgraçados: com a lata do frankstein, olho roxo, cara inchada, nariz quebrado, uns ponto na testa. Trinquei uma costela e quebrei outras duas, a clavícula rachou e a mão tava na carne viva. O médico foi desenrolando essa lista aí e eu aceitando na moral, os pensamentos embaçados, cheio de analgésico, todo bagunçado de dor. Aí teve uma mão que ele deu uma pausa, ficou mais bolado e mandou A real: disse que eu sofri um choque cabuloso no quadril, perdi mais de 80% do fígado, que num tinha como dizer o tamanho real do estrago, mais uma fita era certa, nunca mais ia poder beber, se tomar meia lata que seja, posso encomendar o caixão. Acordei umas três vezes crente que tava tendo um pesadelo, foquei umas horas que tava numa brisa errada de doce. Mas não. A vida é uma viagem desgraçada.