Desespero.app 0 1199

Ffo

Passei boa parte da minha vida transformando a realidade em sonhos, e, não demorou muito para isso se converter em um pesadelo. O desejo de fazer de tudo me guiou ao nada. O primeiro emprego se foi, o segundo passou, do terceiro mal me lembro, o quarto acabou antes da experiência, mas a vida continuou. As oportunidades cada vez mais raras, as exigências mais estratosféricas e o dinheiro cada vez mais curto. A insurgência contra o mercado formal de trabalho foi natural, até porque, foi ele quem se rebelou antes contra a minha pessoa.

 

A internet em casa foi cortada, tinha o dinheiro contado para pagar a conta, mas não sou de entregar os pontos tão facilmente. Assumi o risco, outra vez; fui num bar no centro, tomar umas e usar o wi-fi. A cena é trágica, sozinho numa mesa para oito, o celular ao alcance de uma mão, o copo próximo a outra e a página do jornal com as oportunidades de emprego sob os cotovelos. Já me convencia de que ser frentista noturno não era a pior ideia do mundo (sim, minhas insurgências sempre duraram pouco), quando resolvi virar as páginas do jornal. Já que havia gastado quatro reais nisso, porque não consumir aquele conteúdo duvidoso? Pedi outra cerveja de cereais não maltados, igualmente duvidosos, para brindar minha série de péssimas escolhas.

 

A coluna de economia abrigava o retrato de um jovem empresário, bem mais jovem que eu – “Mais uma cerveja, por favor”. – os dentes perfeitamente alinhados, certamente mais brancos que o papel jornal, a estrutura física de um boxeador e o semblante de um galã de novela – “Traz uma dose de vodka também. Isso, a mais barata” – que filho da puta. Descanso o copo sobre a foto, sei que vai doer ler a matéria, mas não me resta muita alternativa. Mais um daqueles donos de startups, que teve alguma grande ideia inovadora (bocejo longo) e recebeu incentivo de algum gringo desocupado. Já nas primeiras linhas confirmo que o clichê do nosso tempo já estava formado, o cidadão ganhou dinheiro desenvolvendo um aplicativo. Quantos aplicativos cabem num celular hoje em dia? E quantos cabem na nossa vida? Caralho, por que diabos um cara que fez um aplicativo chamado Happy Puppy está estampado no jornal? A urgência de esvaziar a bexiga se aliou à de esvaziar a mente. Pedi um Minister solto quando voltei do banheiro, nada como um cigarro de quarenta centavos para organizar a bagunça mental.

 

De volta à mesa, tiro meu copo de cima do nosso empresário, a foto nem borrou direito, que sujeitinho impertinente. Não queria mais ler, mas não respeito mais minhas vontades. Acho que preciso voltar a frequentar um psicólogo. Os olhos voltam a seguir as linhas do jornal. Que fofo, você se cadastra no aplicativo e se candidata a levar cachorros de madame para passear. Que tipo de gringo investe nisso? Vou fazer um aplicativo para gringos selecionarem as piores ideias para se investir dinheiro, acho que é a única chance que tenho de ficar rico. O depoimento da dona Ludmila chega a ser comovente: agora que seu Shih Tzu passeia quatro vezes por semana, está muito mais disposto e até mesmo sorridente. Não pode ser, devo ter comprado uma edição impressa do Sensacionalista, só isso explica. Vamos ao depoimento do Rômulo, um exemplar passeador de cães: “Eu sempre amei os animais, cursei jornalismo, mas queria ter cursado veterinária. Meu apartamento é pequeno, não posso ter cachorros lá, mas agora é como se eu tivesse vários. A gente realmente se apega aos bichinhos que a gente leva para passear. Fora a ajuda que dá, né? Mês passado o aplicativo me rendeu mil e oitocentos reais.” Chega, já passou do ponto, faz tempo. Vai que algum bom trampo passou batido na coluna de empregos? Melhor conferir antes da próxima dose.

 

Será que rola ler algum livro entre um abastecimento e outro? Nunca vi nenhum frentista com um livro debaixo do braço. Na verdade é cena cada vez mais rara de se ver, em qualquer lugar. Sendo chapeiro numa lanchonete com certeza não dá pra ler, mas diz que o salário pode até ser maior em alguns meses, porque tem a divisão da caixinha dos funcionários. Sei lá. Às vezes dá pra pelo menos ouvir uma música no fone. Acho que como frentista não tem como. Não faço ideia de qual profissão vai me oferecer mais monotonia, de qualquer forma, estou bêbado demais para tomar qualquer decisão prudente. Vendo por esse ponto de vista, devo estar bêbado já fazem uns seis anos. Que merda! Bom, amanhã é um novo dia, sobrou um troco para pôr um crédito no celular, pra ligar no posto e na lanchonete. Eu só queria é ganhar um pouco de dinheiro fazendo nada, tipo observando pássaros ou jogando pão pros peixes. Ou passeando com cachorros? Qual o nome do aplicativo mesmo? Já abracei o capeta tantas vezes que não estranharia se ele me desse um beijo.

 

Gabriel Protski

Previous ArticleNext Article

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Escala de Baumé 0 4830

Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Dai-me Amor 0 3129

Deus foi a primeira palavra que eu aprendi. Antes mesmo de aprender meu nome. Quando se é criança, os adultos tentam nos ensinar as coisas dos jeitos mais variados. Criança só aprende brincando. Minha mãe mandava eu pintar todos os “Deus” que eu achasse na Bíblia. Ela me disse que Deus sempre existiu e nunca nasceu. Perguntei como Ele se parecia. Ela disse que não sabia, pois a glória dEle é tão grande que era como olhar pro Sol. Tentei olhar pro Sol, ardeu.

Depois de pintar tudo, eu aprendi a palavra Jesus. Ela me disse que Jesus é a encarnação do amor, é quem criou todas as coisas. É filho de Deus com uma humana, Maria. Me disse que tem barba e cabelo grande. E que seu olhar muda e transforma escuridão em luz.

Mais tarde ela me falou pra pintar o “Espírito Santo” e disse que Ele não tem forma, corpo ou manifestação material. Já foi pomba no batismo de Jesus, mas também é descrito como o brilho da Glória de Deus. Ela me explicou que Deus se manifesta na trindade. E que eu podia falar com Ele(s) quando eu quisesse. Bastava orar e, é claro, com todo o respeito. E que quando eu orasse deveria confessar meus erros e pedir perdão. Deveria agradecer pelas dádivas e pela bênção da vida. Que deveria contar sobre meu dia, sobre meus medos, descobertas e felicidades. Foi assim que Jesus se tornou meu melhor amigo. Meu amigo imaginário. Meu Deus. Minha mãe me ensinou um bocado de coisas sobre a Bíblia, o céu e sobre como a vida nessa terra é passageira, é escola, é aprendizado, nada é por acaso, nada é destino. Tudo é providencial. Providência divina. Tudo de bom e tudo de ruim tem como propósito nos ensinar sobre Deus, e como Ele age em nossas vidas. Ela me contou que se eu deixasse, Ele poderia morar dentro do meu coração, e assim, o divino habitaria em mim. Disse também, que Jesus vai voltar pra levar os justos pro céu. Perguntei como eu fazia pra ir pro céu, ela me disse que imitando a Jesus, O aceitando como meu Deus e salvador, sua Graça me salvaria independente das obras. Me ensinou que só a religião dela era a correta e junto com essa religião muitas regrinhas, que eu nunca consegui seguir. Por muito tempo achei que por causa da parte que eu não cumpria, Deus não habitava em mim. Me senti perdida, vazia. Comecei a me odiar. Acelerar minha morte. A vida muitas vezes deixa de fazer sentido. Acontece que eu sou muito como Tomé, só acredito vendo. E como acreditar em alguém que eu só ouvi falar e que ninguém nunca viu? Com nove anos veio a primeira dúvida sobre a volta de Jesus. Junto com a dúvida veio a primeira vez que senti Deus falando comigo. Foi diferente de pensar. Foi quase como ouvir palavras que não foram pensadas. Eu ouvi: “Não desista, porque Eu não desisti de você”. Depois desse episódio nunca mais ouvi ele nos meus pensamentos, achei que era coisa de criança ter amigos imaginários, mas vira e mexe alguém usado por Ele me lembrava sobre não desistir de conhecê-Lo e procurá-Lo. E nessa eu vi que Ele não estava na religião. Não estava em uma igreja específica, não era o “não pode” tão popular. Compreendi o que significava Graça e aceitei a minha salvação. Aceitei a trindade e aceitei a minha mãe. Compreendi que amar nada tem haver com sexo ou paixão. Amor transcende toda essa metáfora feita de carbono que chamamos de realidade. Aceitei meu corpo, que foi presente de Deus pro meu espírito habitar. Espírito esse que saiu dEle.

A segunda vez que Deus falou comigo eu já não era mais criança, foi quando percebi que Deus não é religião e um bocado de regrinhas. Ele está onde há luz. E Ele deixou luz em tudo. Tomei um chá com Ele. Meu espírito saiu do corpo e subiu. Contemplei a Glória divina e senti meu espírito ir alto e mais alto. Eu vi a Deus e diferente do que minha mãe dizia, é como olhar pro Sol, mas os olhos não ardem. E Ele me disse: você é um anjo. Você é luz! Você está pronta!

Mateus 5:8 “Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus.”