Às vezes eu me sinto como uma criança sem mãe 0 1136

“Às vezes eu me sinto como uma criança sem mãe. Muito longe de casa”, gritou meu marido e bateu a porta do quarto, trancando com chave. Eu até podia entender, estávamos mesmo longe de casa, vivendo em um tempo obscuro. Por esse lado fazia sentido. Mas a gente tinha finalmente o que queria, aquele era um lugar especial. Neste ponto as coisas mudavam e eu passava a não entender onde ele queria chegar com aquele papo.

Enfim, eu ali sentada no sofá da sala, encarando a televisão. A máquina acendeu a tela e me disse que eu não podia fazer nada. Dizia que era melhor eu ficar ali sentada enquanto ela encontraria um programa que talvez me distraísse e agradasse. Aceitei o convite da máquina e perguntei o que ela poderia me sugerir. Me apresentou um grande número de opções. Tantas que eu tive muita dificuldade em escolher. Até que desisti e disse que colocasse qualquer coisa. Ela respondeu que não poderia fazer isso, por mais que tivesse inúmeras atrações, para todos os gostos, não funcionaria sem um ponto inicial. Era necessário que eu desse o start. “Mostre-me algo épico”, exclamei. A tela me apresentou um cenário medieval, tão imundo que me parecia especialmente realista. Era uma série chamada Charlemagne e tinha aquela coisa de império, romance, traições, guerras e sangue. Porém, o que me deixou intrigada mesmo foi como o primeiro episódio tinha um foco bem importante na relação de Carlos com a mãe dele, Berta de Laon.

O nome da minha mãe é uma variação das versões femininas da alcunha Carlos. Tem todo aquele lance do significado, da força e virilidade, que nem todos conseguem acreditar, mas que às vezes faz bastante sentido. Fiquei meio filosofando sobre esses nomes. Pausei a televisão e comecei a consultar alguns dicionários etimológicos pelo celular. Foi então que ouvi barulhos ensurdecedores. Pareciam estar vindo de muito perto do nosso prédio. A primeira memória que minha mente acessou foi a imagem de explosões coloridas no céu. Mas o ritmo que aqueles sons assumiam, a continuidade interrompida por curtos intervalos, me fizeram desacreditar que podiam ser fogos de artifício.  “São disparos!”, deduzi.

Corri até a janela Oeste, de onde conseguiria ver o Centro Cívico. Mas a Campos Sales estava diferente, não era uma rua única, de largas pistas. Haviam colocado um canteiro com árvores medianas bem no meio, separando a rua em dois lados. Olhei para a esquina de cima e vi que o som dos tiros vinha da região do Tribunal. Mas logo clarões começaram aparecer em outras partes da região Norte da cidade. Munições traçantes, com pequenas doses de fósforo queimando na ponta, cortavam o céu de nuvens baixas e avermelhadas. Apaguei todas as luzes do apartamento e percebi que, incrivelmente, meu marido ainda dormia o sono dos justos. Bati algumas vezes na porta do quarto, mas ele não atendeu. Decidi que, mesmo sem ele, iria descobrir o que estava acontecendo.

Voltei à janela com um binóculo nas mãos e comecei a observar. A cidade estava pegando fogo. Eram muitos focos de confusão. Ouvi o som de um helicóptero que parecia estar cada vez mais próximo. Quando o avistei, vi que um dos tripulantes estava pendurado na porta aberta e segurava um rifle. Voavam no escuro, não havia uma luz acesa na aeronave. Eu consegui observá-los pois chegaram muito perto do nosso prédio.  O homem que carregava a arma apontou em minha direção e me joguei no chão. Depois de um minuto, levantei vagarosamente atrás do sofá, tentando observá-los de novo e vi que ainda estavam lá, mas o atirador já havia abaixado o rifle. Voaram para a região do Tribunal e logo ouvi que o motor parou. Imaginei que haviam descido no heliponto no topo do prédio envidraçado da Mauá.

Decidi não sair de casa, tive medo, mas um segundo depois reconsiderei ao imaginar que aquela confusão poderia não terminar tão cedo, que logo poderia atingir a nossa casa. Eu tinha que descobrir o que estava acontecendo.

Desci as escadas do prédio. A rua de trás estava transfigurada, com carcaças de veículos espalhadas, alguns ainda em chamas. Como aquilo tinha se configurado tão rapidamente, enquanto eu assistia uma simples série de televisão? Não era capaz de imaginar os caminhos que haviam levado a cidade chegar a tal ponto. Nem mesmo um motivo para tamanha desordem. Caminhei até a esquina e todos os quarteirões de cima estavam sem energia. O Tribunal estava no escuro. Escondida nas sombras, do outro lado da rua, caminhei rumo ao Palácio na expectativa de encontrar lá o início da revolta. Segui por uma rua de pedra, com árvores muito altas e velhas e acabei me perdendo. Após alguns minutos perambulando para rumo ignorado, encontrei uma calçada antiga que me dirigiu até uma praça, perto de um rio.

Não conseguia me lembrar como poderia haver um rio naquela parte tão alta da cidade. Me perguntei como em tantos anos morando ali, eu nunca havia me dado conta daquela corrente de água verde e profunda. Enfim, mal tive tempo para pensar nisso, vi que um homem alto, vestindo uniforme, com os olhos pintados de preto, arma em punho, pronto para guerra, se aproximou.

Demorei para reconhecer que era Halsøy, meu amigo escandinavo. Nos conhecemos em Oslo. Ele havia sido meu guia quando fotografamos a Aurora Boreal. Perguntei o que ele fazia em minha cidade e ele me disse que a extrema direita havia iniciado uma invasão mundial. Quase um século depois, tinham resolvido retomar a guerra contra o movimento secularizado ao qual insistiam em atribuir características agnósticas neocomunistas. “Vamos resgatar os velhos costumes”, afirmava Halsøy, defensor inolvidável dos deuses antigos.

Fiquei assustada quando percebi que Halsøy iria me matar. Fechei os olhos esperando o tiro fatal. Ele estava determinado. No entanto, passou por mim em direção à Catedral, que mantinha os sinos badalando sem parar. Perguntei se ele não iria acabar comigo e ele disse que eu não era uma neocomunista como as demais, que era amiga dele e, portanto, pelo menos por enquanto, não deveria me preocupar. Eu disse que ele estava enganado, que todos os meus queridos iriam morrer pela mão dele e de seus amigos fanáticos. “Já que todos irão embora dessa vida, eu não quero ficar sozinha”, gritei com ele.

Halsøy chegou bem perto de mim, era um gigante. Olhou em meus olhos, sorriu e depois me deu uma cabeçada violenta. Virei o rosto, mas foi suficiente apenas para, em vez de me acertar a testa, atingir meu olho esquerdo em cheio. Vi estrelas, vi um buraco negro, vi a cruz e o martelo. Acordei instantes depois e percebi que o gigante Halsøy me carregava no colo. Usou minhas chaves para abrir o prédio, subiu pelas escadas e me jogou dentro do apartamento.

Acordei no sofá, na manhã seguinte, com muitas dores no corpo, principalmente na cabeça. Fiquei completamente aterrorizada. A angústia de que aquilo tudo fosse verdade me afundou em pânico que mal consegui respirar. Ofegante, caminhei até a janela, então fui invadida por grande alívio ao olhar para a Rua Campos Sales e ver que o canteiro central, de árvores medianas, nunca havia existido. Era a eterna via única, de pistas largas. Voltei meu olhar para dentro do apartamento e vi que a televisão ainda estava pausada no mesmo lugar.

 

Jadson André

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Escala de Baumé 0 5084

Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Vida comum parte 1 0 5231

Vida comum parte 1

Véspera de feriado, antes da meia-noite e eu já com meia garrafa de conhaque na mente. Curtia me derreter no gole, de dose, de lata, de garrafa, de todo jeito. No feriado rolou um churrascão que nem lembro se comi, dropei umas caipiras antes de acender o fogo e fiquei mais preocupado com a temperatura das garrafas que da carne. Sábado a ressaca com a mão pesada, tava batendo forte, contra-ataquei com uns latão, encostado nos fundos do posto com a rapeize, só flagrando os doidinho tirando uns racha de Parati, Chevette e Gol Chaleira. Domingo rolou rave na região metropolitana, no meio do mato, não virava ir de bonde, botei uma gasolina na Bizz e meti o pé; duas carteiras de Minister depois já tinha descido whisky com energético, vodka com suco, vários ampola, um doce e umas água colorida que os parceiro botaram, sei lá qual fita, puta gosto de remédio. Bati a nave antes da hora, cheguei em Grayskull sem nem aproveitar a viagem, ensaiava falar e não saia voz, tava tenso, me mordendo, fiquei nervoso: deu bad. Tentei endireitar a caminhada tomando umas águas, mas não rolou, a conta não batia, os dentes rangendo, coração agitado querendo se mudar do peito. Precisava voltar pra minha goma, tomar um banho, talvez dois, sei lá, só precisava vazar, montei na moto e fui. Tava com dois IPVA atrasados, cabreiro de cair numa blitz, e se soprasse um bafômetro explodia a máquina – certeza. Queria chegar logo, entrei no modo Valentino Rossi e corri a milhão, como se fosse fuga. Foi aí que deu ruim no piloto automático, se pá que dormi em cima do jato, lembro só de uns clarão, uns flash. Vi o céu por baixo, deitado no asfalto, sei lá qual fita, tudo nublado, que dia bosta. Me liguei e já tava todo remendado no hospital, numa sala com umas vinte cabeça, todo mundo fudido, uns mais outros menos. Eu? Era cabeça de chave do grupo dos desgraçados: com a lata do frankstein, olho roxo, cara inchada, nariz quebrado, uns ponto na testa. Trinquei uma costela e quebrei outras duas, a clavícula rachou e a mão tava na carne viva. O médico foi desenrolando essa lista aí e eu aceitando na moral, os pensamentos embaçados, cheio de analgésico, todo bagunçado de dor. Aí teve uma mão que ele deu uma pausa, ficou mais bolado e mandou A real: disse que eu sofri um choque cabuloso no quadril, perdi mais de 80% do fígado, que num tinha como dizer o tamanho real do estrago, mais uma fita era certa, nunca mais ia poder beber, se tomar meia lata que seja, posso encomendar o caixão. Acordei umas três vezes crente que tava tendo um pesadelo, foquei umas horas que tava numa brisa errada de doce. Mas não. A vida é uma viagem desgraçada.