O Número Que Você Ligou Encontra-se Desligado Ou Fora Da Área De Serviço 0 3420

O ônibus? Acho que daqui uns dez minutos ele passa, não demora muito não.

Já, já peguei sim. Pegava bastante pra ir pro trabalho.

Não vou pegar hoje não. Faz tempo que não pego ônibus. Tô só me protegendo do sol mesmo.

Onde eu moro? Depende da hora do dia. As vezes aqui nesse ponto mesmo.

Não precisa me pagar um lanche não. O seu Otávio ali da panificadora sempre me dá um almoço.

 

É sim, um homem de bom coração.

 

Quando eu tinha emprego eu sempre tomava um pingado ali, de vez em quando até comia um chineque.

Um gole eu aceito, tá calor né?

Vixe, faz um tempinho já. Eu trabalhava na construção civil, mas aí sofri um acidente. Cai de um andaime, machuquei feio a coluna.

Não tinha registro não, a gente nessa área trabalha tudo na informalidade.

É, né, diz que daqui uns dias vai ser assim pra todo mundo.

Aham, eu morava numa pensão aqui perto.

 

Até tentei voltar pra labuta umas semanas depois, mas não aguentei, acho que até machuquei mais.

 

Agora eu tô bem. No que dá, né? Só tá difícil arrumar uns bicos.

Ah, o pessoal da agência de empregos pede pra eu deixar um telefone pra eles me ligarem, mas tive que vender o meu pra garantir mais um mês na pensão.

Te falar que não adiantou muito, no outro mês ainda não conseguia carregar um saco de palha. É, aí me expulsaram da pensão. Mas também, sem dinheiro pra pagar, né?

Faz uns meses já.

Minha família é do interior de São Paulo, mas não tenho quase ninguém mais por lá.

O seu Otávio até rachou comigo uma passagem pra eu visitar minha mãe, pra ver se achava alguma coisa por aqueles cantos.

Rapaz, você acredita que ela tinha falecido, já fazia uns vinte dias?

É, ninguém tinha como me avisar, sem celular, né?

Fui embora de lá já no outro dia. Não sei. Lá nunca foi o meu lugar, sem ela então…

Obrigado!

Por um acaso você não tem um celular sobrando em casa? Pode ser um bem velhinho mesmo, só pro pessoal da agência de empregos conseguir me ligar.

A é? Sério? Poxa, que maravilha.

Eu tô sempre por aqui. Se você achar ele na gaveta então, nossa, me ajudaria um montão.

Obrigado mesmo.

Aham, aceito mais um gole sim.

Ah, não esquenta não. Com esse celular você já tá fazendo muito por mim.

Acho que a vida é desse jeito mesmo. Tudo passa rápido demais. Muda de uma hora pra outra. Quando a gente vê, ficou esquecido no fundo de uma gaveta, tipo um celular velho.

 

Gabriel Protski

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Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

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hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, prepare a casa
e meu coração pulou afora
bateu amor por toda a cidade

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Ela está vindo!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, mas levo ainda um pouquinho
e antes de te ter em meus braços
já tenho em todos os sonhos do mundo

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Minha menina vai chegar!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, já não falta mais tanto
e prevendo as noites com você,
me vejo em claro sonhando

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Vou ser pai