
Walter abriu os olhos e gastou atenção com a rua, um fio de silêncio violentado por grilos, tapas de vento nas janelas e o inferno tímido das pombas de uma árvore na rua de seu prédio. Cinco e dez de seu aniversário de 77 anos. Passou café fraco para tomar com leite especial e mandou para dentro com cálcio, ômega 3, comprimido para pressão e sanduíches de forno. Ligou baixinho o microsystem num CD perene do Cauby Peixoto e se banhou cantando. Os filhos, tão atarefados como ele enquanto os via crescer, o visitariam à noite, em um velho esquema de sair para jantar em um velho restaurante que ele gostava e de cujas receitas velhas não abria mão por nada, ainda menos quando podia escolher onde comer. “Ele é teimoso”, diziam seus pequenos, agora adultos e quase responsáveis, com ternura tão rala quanto a alegria que sentiam em se reunir.
Vestido para sair, pegou a vassoura menos surrada de casa e uma garrafa vazia. Entrou em modo missão: hora de varrer e regar flores no São Francisco.
Limpou Maria Tereza Bauer, nenhum sinal. Ajeitou a morada de Elisabethe, seu amor, mas ela também cagou para ele, a despeito da importância da data. Walter encostou a vassoura e deu dois passos para trás. Limpou as lentes dos óculos nas mangas da camisa, secou a testa e o pescoço c parou para regular a respiração. Perguntou ao guardinha se ele sabia quando limparam o mármore dos Schinn pela última vez, mas o quepe não fazia ideia.
– Olha, no meu turno não vi nada, senhor. Mas tô no posto há duas semanas.
– Que não veio ninguém eu vejo na poeira, amigo – sorriso semiaberto – Passa o dedo aqui, ó. Mas se aparecer alguém – tirando papel do bolso para anotar telefone – você tem como me ligar? Desculpe o nervosismo. É que tá feio, um desrespeito. Pára, ô. E você deve ter pai, avô, sabe que velho é chato. O guarda aproximou o pescoço para ouvir, solidário.
Walter chegou na quadra dos luteranos, antiga periferia, hoje bairro nobre. Tirando folhas do túmulo Hoffmann deu conta da falta do epitáfio. As palavras em latim davam à peça um charme, um ar solene, uma brisa de honestidade. Tanto faz o que dizia, a intenção era positiva.
O amigo já não conseguia descansar e aproveitou para gritar de uma vez. Walter todo ouvidos, feliz por ouvir André e, de quebra, ajudá-lo, nem que fosse com a mera disposição de ajudar. Um casal atravessou o caminho. Jurema puxou Antônio, indicando com a cabeça, consciente como Romário na grande área: um velho falando com nada, como se dele arrancasse respostas ou apreendesse intenções, numa viagem de olhos abertos. Amarraram os rostos, abaixaram as cabeças e tocaram em disparada.
Hoff disse que o ladrão passava ali direto, “umas nove e pouco”. Estava possesso com o roubo, traquinagem de um morador de rua, antes sujo e sem vergonha, mas de uma semana para cá na beca, todo todo, tênis nos pés, roupas limpas, cabelos cortados. “Até nos dentes o vagabundo deu um jeito, cara”.
Mas a bronca mais forte do Alemão era mesmo com a própria família. “Os cretinos venderam o casarão do Alto da XV, amigo, é mole? Querem dividir a grana”. Nada de brigar e nem de se apegar demais. Trinta ou menos moedas de prata, dividido por quantos? “Os vermes já mexeram até em papelada, transferir no cartório e tudo. O advogado é filho do meu, que também já veio pra cá, e cobrou bem”. Walter até assentiu com a raiva do amigo. Pelo respeito que ainda nutria, silenciou para entender a lamúria, o canto de um cisne atrasado.
“E seus filhos, Walter, não vão acabar fazendo isso contigo também?”
Hoff agoniado e Walter sugado, afundando na espiral de más notícias. Era previsível que a conversa chegasse naquele ponto, sempre chegava, nem aí se era ocasião de aniversário, batismo, primeira comunhão, crisma, casamento, unção de enfermos, independência, dia da república, festa de colheita, farra do vinho, do boi, do frango, do céu, do mar, natal, reveillon, padroeira.
Walter ouviu som de metal e mexeu no aparelho auricular. Apertou os olhos e girou o pescoço para identificar o sinal: um gordinho torrado de sol, cabisbaixo, com sacolas e roupas em um carrinho de supermercado. O azul e a geografia sugeriam Condor. Hoff disse “é esse aí. Agora me ajuda, Waltinho. Desce a mão na cara desse malandro”. Walter levantou os braços para frente, na altura dos ombros: tremedeira. Não tinha mais o coração de ouro de quem corria 30k por semana até alguns anos atrás. Tinha abandonado também, em sequência, boxe, ioga, fisioterapia e pilates. O barrigudo era jovem e forte e, se tivesse mesmo roubado a tumba, parecia ter feito bom uso da moeda. Disse para André que investigaria como pudesse, aí se despediu pensando em nunca mais voltar.
Seguiu o mendigo. Disfarçado em seu sobretudo cinza, um camaleão de outono, misturou-se a detalhes que antes ignorava. O alvo estacionou o carrinho em um canto e pegou um pacote de Trakinas de uma sacola, cabeça e costas na parede, olhos para cima.
Limpando a garganta em voz alta, Walter acenou com as duas mãos, gastando energia para demonstrar que não era uma ameaça. O pançudo olhou para ele:
– Rapaz, tá com fome?
– Oi?
– Cê aí comendo bolacha. É que hoje é meu aniversário. Almoça comigo?
– Almoçar? É o quê?
– Perto daqui. Eu pago. Juro que não é palhaçada.
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Marco Antonio Santos