Os nomes que o [ … ] tem 0 1328

O primeiro batismo aconteceu aos quinze. Não que ele fosse desprovido de apelidos antes disso, é que aquele foi seu primeiro nome genuíno. Nada genérico como peru, benga, jeba, ciclope, carequinha ou quaisquer outras alcunhas que usam por aí. Não é dessa espécie de nome que estou falando. Estou me referindo aos nomes de verdade, e o primeiro deles foi “Jr.”. Com a primeira namorada, descobri que as coisas especiais em nossas vidas deveriam possuir um nome e, portanto, foi isso que passei a ter entre as pernas: o Jú.

Tenho amigos que dão nome a toda sorte de coisas. O carro chamado Astolfo, a viola chamada Hilda, a rede da casa de veraneio chamada Zulmira, e por aí vai. Eu nunca tive o costume de nomear objetos inanimados, mas o meu objeto, bem, de inanimado não tinha nada.

Posso dizer que o Jr. foi um explorador, tinha um mundo novo a conquistar. Com ele as coisas tinham o gosto bobo e despretensioso da adolescência, da descoberta, do amor escondido. Das intermináveis horas ao telefone fixo e da prata fina no anelar direito. No entanto, a gente cresceu e, um dia, o Jr. infelizmente morreu. Algum tempo depois foi rebatizado com um novo nome. Para a segunda namorada, chamava-se o Fera.

Foi aí, então, que algumas diretrizes ficaram mais claras para mim.

Primeira: o nome deveria ser único para cada relacionamento e momento da vida; proibido repetir.

Segunda: o nome deveria surgir espontaneamente, assim como se dá nome a animais de estimação ou bandas de garagem. Pá-pum: se o dog tem cara de Tobias, pronto, é Tobias; se a banda tem cara de Chips of Death, pronto, não tem erro, é batata.

Terceira regra: eram vedados os nomes depreciativos. Já bastava a insegurança martelada em nossas cabeças desde a infância com essa história de tamanho e documento. Ou seja, fosse grande ou pequeno, se fizesse bem o serviço ou sofresse lapsos ocasionais, não importava: nada de nomes com “inho”, Pequeno Príncipe, Peter Pan (o que nunca quer crescer) ou coisa parecida.

Admito que o Jr. havia beirado esse limite, mas era um nome apropriado para um iniciante. Já o Fera – olha essa fera, bitcho! – tinha a segurança que o primeiro não tinha. Aos dezoito, a vida tinha outro tom, a liberdade do recém-adulto dentro de uma garrafa de Fontana. Menos cinema, mais filme nas cobertas. Menos festinha em casa, mais pileque na rua. Quando o porre vinha, segurávamos-nos: os cabelos, os vexames e os chororôs. A gente se entendia, mas como a vida dá voltas, o Fera também se foi.

O terceiro batismo foi ao fim da faculdade: era o Tonhão, proveniente de meu nome, Antônio. Cumpriu em cheio a terceira regra: nada de Toninho, aqui era A-O-Til, porra. Tonhão tinha experiência, mas, como disse o poeta, ainda era jovem o suficiente pra achar que sabia de tudo. Nessa época, a gente viajou pelo mundo e também abriu a cabeça. Deixamos o hardcore empoeirar e redescobrimos a MPB nos vinis. Esgotamos Hollywood e fomos assistir aos europeus. Não, a Fontana a gente não trocou por vinho de verdade; como disse, ainda éramos jovens. Tonhão viveu por uns bons anos; achou até que seria para sempre. Contudo, um dia se acabou.

Depois disso, ele ficou por um bom tempo sem nome nenhum. Entre uma relação líquida e outra, voltou a ser o pau, o pinto… No começo foi uma maravilha, mas logo a crise de identidade começou a bater. Curiosamente, não aconteceu apenas com ele; o Tonho aqui de cima também estava perdidão. Balada atrás de balada, a ressaca a inutilizar os domingos, os corpos que vem e vão sem se dar nomes, o retrogosto dessa tal liberdade – o que é eu vou fazer… – Tal qual cão de rua, comendo de tudo mas sempre com fome.

E aí, um dia, surgiu aquela menina do olhar franzido que estudava arte e era uma coisinha linda-maravilhosa. A gente se sintonizou por umas poucas semanas e assim, sem cerimônia, ela resolveu chamá-lo Pablo.

“Pablo, por quê? Neruda? Escobar?”

“Não, seu burro. O pintor.”

Eu ri. E por um momento me pareceu que aquele trocadilho bobo me bastava, que o nome não poderia ser melhor.

Ela provavelmente sabia que o artista havia sido um homem de muitas mulheres e relações turbulentas, mas não temeu que isso fosse acontecer com ela; não com este Picasso.

O tempo mostraria que estava certa. Se eu me tornei homem de muitas mulheres, foi porque ela própria era, a cada dia, uma mulher diferente. Vez ou outra, chamava meu Pablo pelos demais nomes do pintor… Diego, Juan, Cipriano de la Santíssima Trinidad e os outros tantos. Tão inconstante ela era que também me modelava assim.

Esse foi o quarto batismo e, sabe, eu não duvido que seja para sempre. Não que eu seja desses que acreditam em amor eterno. Mas acredito no poder das risadas.

 

Imagem: Carol Rehbein.

Texto: Murilo.

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Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Vida comum parte 1 0 5227

Vida comum parte 1

Véspera de feriado, antes da meia-noite e eu já com meia garrafa de conhaque na mente. Curtia me derreter no gole, de dose, de lata, de garrafa, de todo jeito. No feriado rolou um churrascão que nem lembro se comi, dropei umas caipiras antes de acender o fogo e fiquei mais preocupado com a temperatura das garrafas que da carne. Sábado a ressaca com a mão pesada, tava batendo forte, contra-ataquei com uns latão, encostado nos fundos do posto com a rapeize, só flagrando os doidinho tirando uns racha de Parati, Chevette e Gol Chaleira. Domingo rolou rave na região metropolitana, no meio do mato, não virava ir de bonde, botei uma gasolina na Bizz e meti o pé; duas carteiras de Minister depois já tinha descido whisky com energético, vodka com suco, vários ampola, um doce e umas água colorida que os parceiro botaram, sei lá qual fita, puta gosto de remédio. Bati a nave antes da hora, cheguei em Grayskull sem nem aproveitar a viagem, ensaiava falar e não saia voz, tava tenso, me mordendo, fiquei nervoso: deu bad. Tentei endireitar a caminhada tomando umas águas, mas não rolou, a conta não batia, os dentes rangendo, coração agitado querendo se mudar do peito. Precisava voltar pra minha goma, tomar um banho, talvez dois, sei lá, só precisava vazar, montei na moto e fui. Tava com dois IPVA atrasados, cabreiro de cair numa blitz, e se soprasse um bafômetro explodia a máquina – certeza. Queria chegar logo, entrei no modo Valentino Rossi e corri a milhão, como se fosse fuga. Foi aí que deu ruim no piloto automático, se pá que dormi em cima do jato, lembro só de uns clarão, uns flash. Vi o céu por baixo, deitado no asfalto, sei lá qual fita, tudo nublado, que dia bosta. Me liguei e já tava todo remendado no hospital, numa sala com umas vinte cabeça, todo mundo fudido, uns mais outros menos. Eu? Era cabeça de chave do grupo dos desgraçados: com a lata do frankstein, olho roxo, cara inchada, nariz quebrado, uns ponto na testa. Trinquei uma costela e quebrei outras duas, a clavícula rachou e a mão tava na carne viva. O médico foi desenrolando essa lista aí e eu aceitando na moral, os pensamentos embaçados, cheio de analgésico, todo bagunçado de dor. Aí teve uma mão que ele deu uma pausa, ficou mais bolado e mandou A real: disse que eu sofri um choque cabuloso no quadril, perdi mais de 80% do fígado, que num tinha como dizer o tamanho real do estrago, mais uma fita era certa, nunca mais ia poder beber, se tomar meia lata que seja, posso encomendar o caixão. Acordei umas três vezes crente que tava tendo um pesadelo, foquei umas horas que tava numa brisa errada de doce. Mas não. A vida é uma viagem desgraçada.