
Desde menina – mais especificamente dos nove anos em diante –, decidi que, quando morrer, quero ser das que deixam algo pra trás. Não uma história de superação em vida, fortuna pra família nem atos heroicos. Só quero causar uma última impressão críptica, dessas que, depois do ocorrido, alguém acaba comentando e sentindo um arrepio. Por isso, o padrão para me despedir de conhecidos não-tão-próximos é o uso do “Adeus” ao invés do “Tchau”.
Desenvolvi também uma frase pr’aquelas situações em que ambos os lados fingem querer aumentar a frequência dos encontros, uma resposta para o famigerado “Vamos marcar uma cervejinha qualquer hora”. Consiste em “Vamos sim, com certeza. A gente nunca sabe quando pode ser a última cerveja, né?”. O interlocutor tende a devolver um receoso “Credo, hahaha, para com isso”, seguido por três batidinhas em alguma superfície de madeira ao alcance das mãos, porque acha que espanta. Mas imagina se não espantar?
Recentemente tenho tentado plantar essa pulga atrás da orelha do meu avô. Pergunto sobre as posições da Igreja Católica sobre a morte, iniciando as questões com “Mas, vô, digamos que eu morra hoje…”, ao que ele responde “Credo-em-cruz!”, crendo que a menção à cruz vai afastar os maus espíritos, para só depois responder à pergunta. Mas digamos que eu falecesse de fato, digamos que a cruz de Jesus não servisse pra esse tipo de mau espírito em específico?
Aos doze, tive um diálogo interessante com uma professora de biologia. Depois de uma nota ruim em uma prova sobre aves, abordei dona Marília com uma fúria que não me era comum. Ela foi bem mais polida do que eu, e me explicou que infelizmente não era assim que as coisas funcionavam e que me faltava um pouco mais de dedicação e interesse. Praguejei, soltei uma mistura de ameaça com provocação: “E se eu morrer amanhã?”, arrisquei. Ela, sorrindo irônica, respondeu “Se morrer amanhã, morre reprovada em biologia”. Gente, que retórica. Acho que esse foi o único caso em que a raiva falou mais alto e eu usei a ideia da minha morte com o objetivo único de causar mal estar, e acabou não dando certo. Mas e se eu tivesse batido as botas, imagina o peso na consciência de dona Marília?
Ao fim das contas, eu acho que gosto é de gerar essa tensão. Criar esse “Será?”, esse “Nossa, tomara que não” que eu imagino cada uma dessas pessoas digerindo ao se despedir de mim. Só espero que, depois de eu fazer a minha passagem definitiva, muita gente pense “Bem que ela avisou” ou “Ela estava estranha mesmo na última vez em que falamos”. Espero expressões de confusão. Não sei se isso é bom ou ruim, mas espero que o leitor não se importe. Um dia eu vou morrer.
Aliás, vai saber?, eu posso inclusive já estar morta no momento em que você lê esse texto.
texto e colagem por Rômulo Candal.
fotos de RealMattKane, stevenbates e Hombit.
Se o Rômulo morrer amanhã, deixa um senhor legado em termos de literatura – e colagens no Photoshop.