Nos conformes 0 1186

Ester queria porque queria uma azinheira nos fundos da chácara. Contava com a devoção por Fátima como arma, mas também fazia sua parte de insistir com Vilson. “Cê tá duro que é um tijolo. Vai ficar lindinha, mandamo trazer grande já”. E se ele queria plátanos para o caminho entre a casa e o bosque, que desse jeito de conseguir também uma cópia fiel da sombra dos pastorinhos. Quem faz um truque faz dois, ué. Ela terminou um chá de boldo, deitou a caneca na grama e livrou as mãos para apontar pontos virgens no terreno em defesa de sua árvore, tapando com o chapéu a vista para o reflexo de sol no lago. A ventilação, mais humanitária que a que enfrentaram na missa, estimulava a troca de ideias, mas Vilson estava em outra, com um olho na mulher e o outro numa condecoração de trabalho. Polia a placa escura de metal, as letras douradas e a pedra lilás como se fossem medalhas, revezando cotonetes entre os dedos, levantando os óculos que recorriam em cair pelo nariz. Queria se exibir para as filhas e netas que os visitariam em algumas horas, dividir novidades, falar de suas vitórias para alguém além dos cachorros de todo dia.

As convidadas começaram a chegar às dez e meia e foram recebidas por Galvão Bueno e sua trupe, GP da Rússia de Fórmula 1 na tv: vinte profissionais do perigo descendo pé nos aceleradores, correndo mais que notícia ruim, ao vivo da Pátria Mãe para o mundo. A reunião familiar prometia mais solenidade e menos barulho que aquilo, marchas mais lentas e menos animosidade.

Eliane, primogênita, levou a maionese que roubou horas de seu dia anterior e a filha Beatriz, dezoito anos, malabarista de tupperwares e de panelas, preparou uma farofa magra e um creme brulée de sobremesa. Sônia, a do meio, chegou com as filhas Valentina e Alice, desde casa desoladas com a falta de wi fi por algumas horas, cheias de assuntos virtuais que só tratariam depois das lições de casa, sofredoras de suas primeiras abstinências. Janete, a caçula, chegou sedenta de caipirinha e mostrou serviço assumindo o fogo. Temperou a alcatra, cortou pepino em rodelas, quebrou folhas de alface e acendeu a churrasqueira. Queimou um pedacinho da camiseta ao aproximar demais o corpo do buraco na parede, mas se recompôs para continuar o trabalho sem interrupções, tomando cerveja como quem só vê chance de satisfação com a próxima. O carvão estalava, pedia mais. Linguiça, pão de alho e carne dividindo harmoniosamente a grelha, uma moldura de aço inox ideal para o domingo. Richard II, o golden retriever, ao lado, deitado sobre as patas dianteiras e esperando pela benevolência de seus donos, faminto do que quer que fosse desde que não fosse ração mais uma vez. Laffayette, o outro cachorro da casa, um cocker spaniel preto, nadava no laguinho.

O pai cruzou garfo e faca no prato e saiu. Largou um “deixa a louça comigo” nada convicto, já sentado na varanda, com as mãos na barriga. Juntou alpiste e aveia e jogou a mistura em cima do muro que separava sua propriedade da rua.  A calopsita Rosário se aproximou devagar, com as asas em v, sendo acompanhada pelas rolinhas da região. Os pássaros saciaram o desejo do velho de ver um esbalde, ele cheio da graça de um bom anfitrião, alegre em promover o banquete. Eliane se aproximou com um aparelho de pressão em mãos e esperou o pai oferecer o braço esquerdo. “Ninguém é de ferro, pode vir medir sem chororô”. Ele ergueu a manga da camisa de olho nas abóboras e repolhos que nasciam num canto, querendo envolver-se para sempre no amparo daquela mulher que já tinha sido bebê em seus braços. “12 por 8, cara, se livrou da dieta que eu ia sugerir, pode comemorar”. “Então traz meu copinho e aquela garrafa de Seleta de cima da geladeira, por favor”.

“A Era do Gelo 4” freou todo gasto de energia. Nem as crianças aguentaram. Hora de dormir. A tropa só acordou no segundo gol de Ponte Preta x Corinthians, pela final do Paulistão.

Ester pôs água para ferver e caçou o controle remoto para abaixar o volume. Arrumou o coador na garrafa, juntou pó de café, açúcar e adoçante em cima do balcão. Ouviu um guincho – terror sobre patas – um rato na porta. Valentina e Alice viram a mesma coisa e não quiseram ignorar o monstro – subiram no sofá gritando abraçadas, num misto de pavor e excitação. A senhora se armou de uma vassoura e expulsou a ameaça, o roedor que voltasse para o mato de onde saiu, que sumisse em nome da paz, ali não tinha nada para ele. As netas, reverentes, ainda viram a vovó heroína ajeitar a barra do vestido antes de voltar para o café com seu sorriso largo e vaidoso.

Laffayette, sujo de cavar no gramado, pulava e rodopiava na sala. Ainda não sabia, mas estava em preparação avançada para ser o novo detentor exclusivo dos carinhos da casa. Sônia levantou exalando desgraça, e o bicho fez cara de que entendia tudo. “O Richard II já tá com 13 anos e tá pra ir pra fita. Nessa idade, golden retriever não dura muito. Se passar desse Natal, não vai até o próximo, é articulação, é o veneno que ele tomou esses dias, é uma porrada de coisas”. As crianças abaixaram os olhos em silêncio, virgens de período de luto. Vilson não fazia média e respondeu a filha. “Sempre fui mais de mato que de bicho. E eu ainda vou pegar o safado que jogou chumbinho pra esse coisa, tô pra colocar câmeras na propriedade, o rapaz vem nessa semana mesmo, vocês que me esperem pra ver”.

Faustão parecia se divertir com alguém que caiu de bunda no chão. Vilson ainda enterrado no sofá, sem coragem de levantar nem para ir ao banheiro. Ester firme, recomposta pelo café e com uma bula de remédio na mão, trombou com a placa de homenagem do marido e pendurou no lugar certo, num quadro de madeira que tinha mandado instalar havia dias na parede da sala. A honraria ornava com o lugar. O circo se preparando para ir embora, os velhos loucos para esquentar água e, nela, misturar hortelã e alecrim para um escalda pés ao som dos grilos. Mas Ester nunca desistiu, e não estava disposta a começar. “Se você não quer trazer minha azinheira por bem, que seja pelo menos pra eu me esconder dessas porcarias de câmeras que cê quer colocar na chácara, homem. Toma jeito, rapaz”.

 

 

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Marco Antonio Santos

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Escala de Baumé 0 5052

Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Chegada 0 6550

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, prepare a casa
e meu coração pulou afora
bateu amor por toda a cidade

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Ela está vindo!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, mas levo ainda um pouquinho
e antes de te ter em meus braços
já tenho em todos os sonhos do mundo

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Minha menina vai chegar!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, já não falta mais tanto
e prevendo as noites com você,
me vejo em claro sonhando

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Vou ser pai