A culpa foi daquele beijo 0 1392

Beijar meninas foi o segredo do ensino médio. Ficar com as amigas era uma opção discreta quando se queria uns amassos sem cair na falácia masculina. Mas os tempos de faculdade eram diferentes, ter relacionamentos com o sexo oposto não a deixava mais envergonhada, ruborizada, calada. Conseguia não só conversar, como também descobriu o poder que os olhos têm em deixar transparecer o desejo, a carência e as vontades.

“Ele beijava como uma menina”, pensou ela. Mexia seus lábios com falta de pressa, fazendo com que a sensação macia do seu beijo fosse maior. A situação exigia rapidez, mas o ato era vagaroso.

Viu o desejo estampado no negro dos olhos verdes de Tadeu e estremeceu. Ela continuou encarando, ingenuamente vidrada naqueles olhos que cada vez se aproximavam mais. Agora eram colegas de estágio e o encontro na escadaria de emergência do prédio coincidiu naquele beijo. Se fossem pegos, seria constrangedor. O estágio exigia uma postura profissional, mas aquele momento nas escadas os fizera esquecer disso. A partir daí, faziam tudo juntos.

Amava tudo nele, o cabelo cacheado, seu gosto artístico, seus assuntos, seu gosto musical, seus livros, suas ideias, sua rotina, seus planos, seus princípios, sua rebeldia, sua indecisão, sua melancolia. Jogou-se de cabeça. Quatro anos depois estavam morando juntos. E moraram juntos por mais três anos quando as brigas começaram. Com o tempo os assuntos pareciam ser sempre os mesmos, os planos sempre mudavam, seu gosto artístico resumia-se a vida boêmia, e seu cabelo cacheado? Ele havia vendido para investir em mais uma ideia sem sucesso. As brigas eram sempre sobre ela estar fazendo demais a ponto de querer desistir, contra o argumento que ele precisava de mais espaço.

Diferente das outras noites, naquela, os travesseiros eram novos. A casa parecia vazia demais. Já era julho, o que significava que ela já não o via há seis meses. O limite entre sentir saudade e a loucura já havia sido ultrapassado. Naqueles seis últimos meses ouviu todas as músicas que ele havia lhe mostrado, releu todos os livros que ele lhe havia indicado, revisitou os lugares que eles haviam passado, então se deu conta de cada canto da cidade a lembrava dele.

Trocou os travesseiros porque sonhou tantas vezes com ele nos últimos meses que talvez a troca de travesseiros embalasse novos sonhos. Colocava toda a culpa da separação, nos sete anos de convivência e no fato dele ser libriano. Tinha dúvidas se em algum momento ele realmente a tinha amado. Às vezes, tarde da noite, já muito alcoolizada, fumava e tinha a sensação que ele a amava e que toda vez que fizesse isso, teria a sensação de ter ele por perto. Isso foi seu escape nos três primeiros meses, nos outros três enjoou de tudo isso na intenção se enjoar dele também, inutilmente. Na manhã seguinte, encarou o envelope que havia chegado pelo correio. Ele queria o divórcio, ela recordava-se do encontro nas escadarias.

Texto e imagem: Caroline Rehbein

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Vida comum parte 1 0 5195

Vida comum parte 1

Véspera de feriado, antes da meia-noite e eu já com meia garrafa de conhaque na mente. Curtia me derreter no gole, de dose, de lata, de garrafa, de todo jeito. No feriado rolou um churrascão que nem lembro se comi, dropei umas caipiras antes de acender o fogo e fiquei mais preocupado com a temperatura das garrafas que da carne. Sábado a ressaca com a mão pesada, tava batendo forte, contra-ataquei com uns latão, encostado nos fundos do posto com a rapeize, só flagrando os doidinho tirando uns racha de Parati, Chevette e Gol Chaleira. Domingo rolou rave na região metropolitana, no meio do mato, não virava ir de bonde, botei uma gasolina na Bizz e meti o pé; duas carteiras de Minister depois já tinha descido whisky com energético, vodka com suco, vários ampola, um doce e umas água colorida que os parceiro botaram, sei lá qual fita, puta gosto de remédio. Bati a nave antes da hora, cheguei em Grayskull sem nem aproveitar a viagem, ensaiava falar e não saia voz, tava tenso, me mordendo, fiquei nervoso: deu bad. Tentei endireitar a caminhada tomando umas águas, mas não rolou, a conta não batia, os dentes rangendo, coração agitado querendo se mudar do peito. Precisava voltar pra minha goma, tomar um banho, talvez dois, sei lá, só precisava vazar, montei na moto e fui. Tava com dois IPVA atrasados, cabreiro de cair numa blitz, e se soprasse um bafômetro explodia a máquina – certeza. Queria chegar logo, entrei no modo Valentino Rossi e corri a milhão, como se fosse fuga. Foi aí que deu ruim no piloto automático, se pá que dormi em cima do jato, lembro só de uns clarão, uns flash. Vi o céu por baixo, deitado no asfalto, sei lá qual fita, tudo nublado, que dia bosta. Me liguei e já tava todo remendado no hospital, numa sala com umas vinte cabeça, todo mundo fudido, uns mais outros menos. Eu? Era cabeça de chave do grupo dos desgraçados: com a lata do frankstein, olho roxo, cara inchada, nariz quebrado, uns ponto na testa. Trinquei uma costela e quebrei outras duas, a clavícula rachou e a mão tava na carne viva. O médico foi desenrolando essa lista aí e eu aceitando na moral, os pensamentos embaçados, cheio de analgésico, todo bagunçado de dor. Aí teve uma mão que ele deu uma pausa, ficou mais bolado e mandou A real: disse que eu sofri um choque cabuloso no quadril, perdi mais de 80% do fígado, que num tinha como dizer o tamanho real do estrago, mais uma fita era certa, nunca mais ia poder beber, se tomar meia lata que seja, posso encomendar o caixão. Acordei umas três vezes crente que tava tendo um pesadelo, foquei umas horas que tava numa brisa errada de doce. Mas não. A vida é uma viagem desgraçada.

O estranho caso da sommelière de lágrimas 1 3524

Por Mariana Porto

 

No dia em que nosso amor morreria, você me trouxe um vinho de qualidade questionável e disse “isso é pra você aprender que a vida pode te surpreender”. Na hora, juro que fiquei inicialmente sem entender, já que o fato do vinho ser meio agressivo eu já esperava. No entanto, confesso que isso jamais tinha sido um problema em nossa relação.

Sem medo de parecer clichê, posso dizer que seus beijos sempre harmonizaram tão bem, e que sua boca me preenchia com tanta delicadeza, que mesmo se eu tivesse acabado de tomar uma dose da pior cachaça da praça, ainda assim, me desceria com o frescor mais equilibrado que já provei.

Mas, naquele dia, eu senti tudo como um grande coice, de uma brutalidade que foi realmente inesperada. Você segurou meu rosto, se despediu, e me deu um beijo seco. Sua mão estava suada, mas entendo que também não deve ter sido fácil pra você — tanto me dizer adeus, quanto tomar aquele vinho ruim.

Você saiu e bateu a porta, me deixou e deixou aquela garrafa que, no fim, fiz questão de guardar como souvenir, só pra lembrar do azedume que nosso amor se tornou. Serviu também para não esquecer de que você me largou ali, sozinha, e tomando aquele vinho vagabundo diluído em uma tristeza profunda. “Sommelière de lágrimas”, é um título eu ostento até hoje por sua causa.

Mas, sendo bem sincera, admito que eu guardo essa garrafa vergonhosa principalmente como uma artimanha pra tentar me impedir de sentir saudades. Essa saudade de quando eu poderia me embriagar inteira de você, e ainda me manter de pé. Feliz. Com a boca preenchida, com o frescor do amor novo. Porque eu sinto sim saudades. Todos os dias. Desde o dia que nosso amor pareceu que morreu.

“Oh you are in my blood like holy wine
You taste so bitter
And so sweet oh
I could drink a case of you darling and I would
Still be on my feet
Oh I would still be on my feet”