
Eu nem gosto muito de sanduíche e fazia muito tempo que estava proibido de tomar refrigerante, uma cerveja então, nem pensar. Depois de hesitar por alguns segundos, me vi perambulando pela avenida que circunda a lagoa, na zona central da ilha. Caminhei olhando os restaurantes que se enfileiram até o fim da via, ao pé de um morro. Por instantes fiquei em frente àquelas fachadas e às vezes olhava para trás e observava a água do grande lago refletindo a luz acanhada de um Sol que custava aparecer. Tardes nubladas no litoral não deveriam existir. Eu não devia ter entrado naquele restaurante, mas entrei, meus critérios de decisão são inclinados ao fantástico e ao contraditório. Minha metanoia é contrassenso. “Arrependimento é paraíso”, como diz meu amigo Brooks.
O salão da lanchonete era comprido e não muito largo. Mesas todas muito próximas umas das outras. Me acomodei perto da coluna central. Logo uma garçonete loira, bem novinha, dessas cowgirls, usando um boné rosa, cinto brilhante e batom vermelho se aproximou. Pedi um sanduíche e uma garrafa de 1795. Ela anotou e desapareceu. Na parede do fundo havia uma tela suspensa, assim como na quadrela oposta, do outro lado da sala. Não importava em qual lado da mesa o cliente sentasse, ficaria posicionado de modo que não perdesse a programação enquanto fizesse a refeição distraído, engolindo irrefletidamente cada pedaço mal mastigado, remoendo e assistindo ao episódio de novela, ao telejornal, ao talk show engraçadão. Era fim de semana e assistíamos a uma partida de futebol entre Avaí e Tubarão. Estava quase no fim do primeiro tempo e o time da capital perdia por dois a zero.
Recebi o sanduba em um prato com garfo e faca, seguidos da garrafa e do copo, então comecei a comer e beber oferecendo a atenção de minhas córneas e escleras aos lances do jogo. O lanche estava bom. Nutrindo-me com bom nível calórico, levemente anestesiado e entretido, nada poderia abalar meu estado de conforto, a impaciência havia desaparecido e eu quase nem lembrava que ela tinha existido. Calma plena e ruminante.
Foi aí que dois homens entraram na lanchonete. Um deles era oriental, de estatura média. O outro um pouco mais alto, com os traços desses catarinas descendentes de alemães meio maltratados pelo Sol tropical. Atrás dos dois vinha uma garotinha de olhos puxados. Os três sentaram duas mesas à frente da minha. O japonês ficou de costas e o catarina voltado para minha direção. A menina, em vez de ficar ao lado do oriental, se acomodou na cadeira perto do alemão. Ela me encarou com aqueles olhos apertados em um único momento, depois não olhou mais. Transigida, apenas observava a superfície branca da mesa e por duas vezes, muito tímidas, a vi brincar com o suor que escoria das garrafas. Fazia movimentos rápidos com seus finíssimos dedos indicadores, escorregando-os em círculos sobre o tampo molhado. Inibição e singeleza em excesso constituíam seu estratagema para manter os mecanismos de defesa em constante e silenciosa atividade. Com perspicácia, a menina disfarçava o estado de concentração que a fazia reter cada palavra que os dois homens trocavam.
Observando dissimuladamente por alguns instantes, percebi que as características orientais dela não eram tão acentuadas. Era bem provável que o pai fosse mesmo o catarina. Concluí, de forma preliminar, que o japonês de costas para mim poderia ser cunhado do alemão ou mesmo algum amigo da comunidade oriental, na qual o catarina estava inserido por causa da relação com sua esposa, uma descendente de japoneses, coreanos quem sabe. Isso explicava o motivo de a criança ter sentado daquele lado da mesa, perto de seu suposto verdadeiro pai. Ulteriormente, fui acometido por erro de percepção, algo que vem se tornando mais ordinário à medida que os anos se renovam. Quando voltei meus olhos na direção do catarina ao lado da menina, ele havia adquirido distintivas tipicamente orientais. Apesar dos cabelos claros e da pele em tons rosados, as linhas da face pareciam agora carregar caracterizantes asianos. Pisquei rapidamente algumas vezes e em seguida apertei as pálpebras com força na expectativa de que minha visão voltasse ao normal, mas não surtia efeito. Os traços de catarina haviam desvanecido, dando espaço ao fenótipo nipão.
Os dois homens conversavam com o tom de voz abafado e insuficientes ondas sonoras atingiam minhas orelhas. Pouco pude ouvir, muito do que captei foi por meio da leitura dos lábios do teuto-nipo-catarina, processo bastante prejudicado pela necessidade de ocultar meu foco de interesse e assim possibilitar que a conversação deles fluísse em ampla naturalidade. Poucos segundos de análise generalista haviam sido suficientes para assimilar as técnicas de espionagem da garotinha. Segui ruminando meu sanduíche e assistindo ao jogo. Com singeleza e descompromisso, mantive a visão frontal apontada para a televisão e a periférica scaneando as expressões faciais do suposto pai da menina.
Decifrei palavras avulsas, nenhuma oração completa se formou em meu relatório mental. Contudo, expressões-chave como “é carinhosa” ou “discreta como nenhuma” e até mesmo “não vai se arrepender” puderam ser decodificadas por intermédio da movimentação discreta dos lábios esbranquiçados, execrados pela aridez, do tutor misterioso. Não pude registrar a reação do interlocutor ao receber tal discurso. Ele permanecia de costas para mim, imóvel, apenas o braço direito se movimentava para apanhar o copo americano e dirigir o líquido fermentado garganta abaixo. Os dois homens conversaram mais um pouco e em seguida apertaram as mãos, signo universal para conclusão de um trato. Tomaram mais duas cervejas e agora, em tom descontraído, falavam sobre futebol, barcos motorizados e as dificuldades da pesca em alto mar.
Cinco minutos depois, quando eu já havia terminado de comer e navegava pelo celular, os três saíram da mesa em direção ao caixa. Aguardei por alguns segundos e virei para assisti-los deixar o estabelecimento. A menina caminhava segurando a mão esquerda do japonês. O catarina que tinha chegado com ela já havia desaparecido correndo na frente.
Paguei a conta e fui para meu apartamento alugado perto da Praia Mole. O céu do fim de tarde estava rosado, as nuvens escuras tinham ido embora. A brisa que vinha do oceano renovou minha calma. Desfrutei os momentos finais daquele dia com os pés na água gelada do mar, caminhando na areia macia sem me importar muito com as tarefas que me aguardavam.
Na madrugada que se seguiu, sonhei que ainda passeava por um carreiro de areia em meio a restinga litorânea. Perdido na noite sem estrelas, vi na praia, ao longe, a menina de olhos puxados e cabelos curtos. Ela estava em desespero e corria nua em direção ao oceano para ser engolida pela tormenta e desaparecia rapidamente na imensidão das ondas. As espumas em que ela sucumbiu vieram tocar meus pés na areia. Acordei e pela manhã, durante o café, assisti alguns episódios de desenho animado. Toda vez que assisto Knights of Sidonia lembro daquela garota sendo engolida pelos tentáculos monstruosos do oceano. Às vezes, no sonho, ela hesita em correr para o mar, então o japonês sem rosto aparece e a arrasta pelo braço.
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Texto: Jadson André
Imagem: Caroline Rehbein