Arrependimento é paraíso 0 1185

Eu nem gosto muito de sanduíche e fazia muito tempo que estava proibido de tomar refrigerante, uma cerveja então, nem pensar. Depois de hesitar por alguns segundos, me vi perambulando pela avenida que circunda a lagoa, na zona central da ilha. Caminhei olhando os restaurantes que se enfileiram até o fim da via, ao pé de um morro. Por instantes fiquei em frente àquelas fachadas e às vezes olhava para trás e observava a água do grande lago refletindo a luz acanhada de um Sol que custava aparecer. Tardes nubladas no litoral não deveriam existir. Eu não devia ter entrado naquele restaurante, mas entrei, meus critérios de decisão são inclinados ao fantástico e ao contraditório. Minha metanoia é contrassenso. “Arrependimento é paraíso”, como diz meu amigo Brooks.

O salão da lanchonete era comprido e não muito largo. Mesas todas muito próximas umas das outras. Me acomodei perto da coluna central. Logo uma garçonete loira, bem novinha, dessas cowgirls, usando um boné rosa, cinto brilhante e batom vermelho se aproximou. Pedi um sanduíche e uma garrafa de 1795. Ela anotou e desapareceu. Na parede do fundo havia uma tela suspensa, assim como na quadrela oposta, do outro lado da sala. Não importava em qual lado da mesa o cliente sentasse, ficaria posicionado de modo que não perdesse a programação enquanto fizesse a refeição distraído, engolindo irrefletidamente cada pedaço mal mastigado, remoendo e assistindo ao episódio de novela, ao telejornal, ao talk show engraçadão. Era fim de semana e assistíamos a uma partida de futebol entre Avaí e Tubarão. Estava quase no fim do primeiro tempo e o time da capital perdia por dois a zero.

Recebi o sanduba em um prato com garfo e faca, seguidos da garrafa e do copo, então comecei a comer e beber oferecendo a atenção de minhas córneas e escleras aos lances do jogo. O lanche estava bom. Nutrindo-me com bom nível calórico, levemente anestesiado e entretido, nada poderia abalar meu estado de conforto, a impaciência havia desaparecido e eu quase nem lembrava que ela tinha existido. Calma plena e ruminante.

Foi aí que dois homens entraram na lanchonete. Um deles era oriental, de estatura média. O outro um pouco mais alto, com os traços desses catarinas descendentes de alemães meio maltratados pelo Sol tropical. Atrás dos dois vinha uma garotinha de olhos puxados. Os três sentaram duas mesas à frente da minha. O japonês ficou de costas e o catarina voltado para minha direção. A menina, em vez de ficar ao lado do oriental, se acomodou na cadeira perto do alemão. Ela me encarou com aqueles olhos apertados em um único momento, depois não olhou mais.  Transigida, apenas observava a superfície branca da mesa e por duas vezes, muito tímidas, a vi brincar com o suor que escoria das garrafas. Fazia movimentos rápidos com seus finíssimos dedos indicadores, escorregando-os em círculos sobre o tampo molhado. Inibição e singeleza em excesso constituíam seu estratagema para manter os mecanismos de defesa em constante e silenciosa atividade. Com perspicácia, a menina disfarçava o estado de concentração que a fazia reter cada palavra que os dois homens trocavam.

Observando dissimuladamente por alguns instantes, percebi que as características orientais dela não eram tão acentuadas. Era bem provável que o pai fosse mesmo o catarina. Concluí, de forma preliminar, que o japonês de costas para mim poderia ser cunhado do alemão ou mesmo algum amigo da comunidade oriental, na qual o catarina estava inserido por causa da relação com sua esposa, uma descendente de japoneses, coreanos quem sabe. Isso explicava o motivo de a criança ter sentado daquele lado da mesa, perto de seu suposto verdadeiro pai. Ulteriormente, fui acometido por erro de percepção, algo que vem se tornando mais ordinário à medida que os anos se renovam. Quando voltei meus olhos na direção do catarina ao lado da menina, ele havia adquirido distintivas tipicamente orientais. Apesar dos cabelos claros e da pele em tons rosados, as linhas da face pareciam agora carregar caracterizantes asianos. Pisquei rapidamente algumas vezes e em seguida apertei as pálpebras com força na expectativa de que minha visão voltasse ao normal, mas não surtia efeito. Os traços de catarina haviam desvanecido, dando espaço ao fenótipo nipão.

Os dois homens conversavam com o tom de voz abafado e insuficientes ondas sonoras atingiam minhas orelhas. Pouco pude ouvir, muito do que captei foi por meio da leitura dos lábios do teuto-nipo-catarina, processo bastante prejudicado pela necessidade de ocultar meu foco de interesse e assim possibilitar que a conversação deles fluísse em ampla naturalidade. Poucos segundos de análise generalista haviam sido suficientes para assimilar as técnicas de espionagem da garotinha. Segui ruminando meu sanduíche e assistindo ao jogo. Com singeleza e descompromisso, mantive a visão frontal apontada para a televisão e a periférica scaneando as expressões faciais do suposto pai da menina.

Decifrei palavras avulsas, nenhuma oração completa se formou em meu relatório mental. Contudo, expressões-chave como “é carinhosa” ou “discreta como nenhuma” e até mesmo “não vai se arrepender” puderam ser decodificadas por intermédio da movimentação discreta dos lábios esbranquiçados, execrados pela aridez, do tutor misterioso. Não pude registrar a reação do interlocutor ao receber tal discurso. Ele permanecia de costas para mim, imóvel, apenas o braço direito se movimentava para apanhar o copo americano e dirigir o líquido fermentado garganta abaixo. Os dois homens conversaram mais um pouco e em seguida apertaram as mãos, signo universal para conclusão de um trato. Tomaram mais duas cervejas e agora, em tom descontraído, falavam sobre futebol, barcos motorizados e as dificuldades da pesca em alto mar.

Cinco minutos depois, quando eu já havia terminado de comer e navegava pelo celular, os três saíram da mesa em direção ao caixa. Aguardei por alguns segundos e virei para assisti-los deixar o estabelecimento. A menina caminhava segurando a mão esquerda do japonês. O catarina que tinha chegado com ela já havia desaparecido correndo na frente.

Paguei a conta e fui para meu apartamento alugado perto da Praia Mole. O céu do fim de tarde estava rosado, as nuvens escuras tinham ido embora. A brisa que vinha do oceano renovou minha calma. Desfrutei os momentos finais daquele dia com os pés na água gelada do mar, caminhando na areia macia sem me importar muito com as tarefas que me aguardavam.

Na madrugada que se seguiu, sonhei que ainda passeava por um carreiro de areia em meio a restinga litorânea. Perdido na noite sem estrelas, vi na praia, ao longe, a menina de olhos puxados e cabelos curtos. Ela estava em desespero e corria nua em direção ao oceano para ser engolida pela tormenta e desaparecia rapidamente na imensidão das ondas. As espumas em que ela sucumbiu vieram tocar meus pés na areia. Acordei e pela manhã, durante o café, assisti alguns episódios de desenho animado. Toda vez que assisto Knights of Sidonia lembro daquela garota sendo engolida pelos tentáculos monstruosos do oceano. Às vezes, no sonho, ela hesita em correr para o mar, então o japonês sem rosto aparece e a arrasta pelo braço.

Texto: Jadson André

Imagem: Caroline Rehbein 

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Escala de Baumé 0 5052

Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Vida comum parte 1 0 5198

Vida comum parte 1

Véspera de feriado, antes da meia-noite e eu já com meia garrafa de conhaque na mente. Curtia me derreter no gole, de dose, de lata, de garrafa, de todo jeito. No feriado rolou um churrascão que nem lembro se comi, dropei umas caipiras antes de acender o fogo e fiquei mais preocupado com a temperatura das garrafas que da carne. Sábado a ressaca com a mão pesada, tava batendo forte, contra-ataquei com uns latão, encostado nos fundos do posto com a rapeize, só flagrando os doidinho tirando uns racha de Parati, Chevette e Gol Chaleira. Domingo rolou rave na região metropolitana, no meio do mato, não virava ir de bonde, botei uma gasolina na Bizz e meti o pé; duas carteiras de Minister depois já tinha descido whisky com energético, vodka com suco, vários ampola, um doce e umas água colorida que os parceiro botaram, sei lá qual fita, puta gosto de remédio. Bati a nave antes da hora, cheguei em Grayskull sem nem aproveitar a viagem, ensaiava falar e não saia voz, tava tenso, me mordendo, fiquei nervoso: deu bad. Tentei endireitar a caminhada tomando umas águas, mas não rolou, a conta não batia, os dentes rangendo, coração agitado querendo se mudar do peito. Precisava voltar pra minha goma, tomar um banho, talvez dois, sei lá, só precisava vazar, montei na moto e fui. Tava com dois IPVA atrasados, cabreiro de cair numa blitz, e se soprasse um bafômetro explodia a máquina – certeza. Queria chegar logo, entrei no modo Valentino Rossi e corri a milhão, como se fosse fuga. Foi aí que deu ruim no piloto automático, se pá que dormi em cima do jato, lembro só de uns clarão, uns flash. Vi o céu por baixo, deitado no asfalto, sei lá qual fita, tudo nublado, que dia bosta. Me liguei e já tava todo remendado no hospital, numa sala com umas vinte cabeça, todo mundo fudido, uns mais outros menos. Eu? Era cabeça de chave do grupo dos desgraçados: com a lata do frankstein, olho roxo, cara inchada, nariz quebrado, uns ponto na testa. Trinquei uma costela e quebrei outras duas, a clavícula rachou e a mão tava na carne viva. O médico foi desenrolando essa lista aí e eu aceitando na moral, os pensamentos embaçados, cheio de analgésico, todo bagunçado de dor. Aí teve uma mão que ele deu uma pausa, ficou mais bolado e mandou A real: disse que eu sofri um choque cabuloso no quadril, perdi mais de 80% do fígado, que num tinha como dizer o tamanho real do estrago, mais uma fita era certa, nunca mais ia poder beber, se tomar meia lata que seja, posso encomendar o caixão. Acordei umas três vezes crente que tava tendo um pesadelo, foquei umas horas que tava numa brisa errada de doce. Mas não. A vida é uma viagem desgraçada.