Fila 0 1977

Jonathan viu os velhos rearranjando cadeiras para não desagrupar no almoço e escolheu o caminho da confusão. O menino passou a expirar forte enquanto o grupo se arrastava, o coração pesando no peito, mas aguentou em seu canto, costas na parede, refri no copo. Tinha recebido outros golpes mais cedo: a gargalhada do professor de matemática ao deixá-lo de recuperação, o subsequente desmascaramento na frente da turma e, ai meu Deus, de Lúcia, com quem sonhava namorar, casar e ter filhos – se tudo saísse como queria. O mestre disse que a nota chegou a quatro e meio porque tolerou um trabalhinho mais ou menos para dar uma moral. A exposição incomodou tanto quanto incomodavam as feras que, mais selvagens que qualquer ideia de qualquer um dos Bháskara, lembravam a todos de suas presenças a cada pedido gritado de porção ou bebida.

O garoto queria evitar que outros vermes insolentes lhe enchessem a paciência, que quaisquer moscas passassem ilesas do descuido de pousar em sua roupa, na torcida sincera para nenhum rato cruzar seu horizonte. Começou a retorcer o rosto.

Mãe, cê tem antiácido?

Não, meu filho. Por quê?, tá mal?

A comida não desceu bem, essa lasanha sem vergonha, esse bifinho xoxo, esse arroz raspado de fundo de panela. Peguei coisa demais. Tem nada, nada aí?

Tem água, quer?

Os técnicos do ar-condicionado desligaram o sistema para fazer testes e sentaram para comer, já que a refeição era parte do pagamento. O ventilador fraco, insuficiente para a demanda e mambembe em seu eixo no teto, e o quilo a mais de quarenta e cinco reais completavam o cenário macabro.

Os velhos começaram a levantar para ir embora sem ter feito prisioneiros, satisfeitos como abutres, uns amparando os outros, todos bêbados de batida de maracujá. A mãe e o filho aceitaram a derrota e entraram na fila de pagar em sétimo, cientes de que a paciência os ajudaria a vencer o inconveniente do desperdício de tempo – se tudo saísse como queriam. O garoto começou a fechar e abrir as mãos dentro dos bolsos, doido para socar alguém até se machucar, com o aquecimento acobertado pelo tecido grosso. Observava os rivais de butuca, prevendo alguma sacanagem desde que o garçom tentou acertar a conta deles direto na mesa – um benefício exclusivo para amigos da casa. Para os dois o tratamento foi outro: o funcionário sacou a calculadora do bolso sem emoção, riscou mais alguma coisinha no papel, soltou a bomba e saiu, limpando os óculos na camisa. Já para a corte o súdito pediu desculpas, considerava uma infelicidade não poder cuidar deles nas melhores condições.

É que a maquininha ficou fora da tomada a manhã inteira, é que aqui das onze e meia às três é essa loucura mesmo, a fila é porque o novato do caixa ainda não tá no jeito para o serviço.

Mãe, e esse papo de 10%? Não dou nenhum centavo, é opcional. Eles que deviam pagar a gente.

O desconforto amassava os órgãos do menino, o que piorou quando o líder dos velhos, um de jaqueta Nederland, avançou pela esquerda fazendo vento, nervoso que nem ladrão em carro furtado. A linha amarela no chão não tinha valor para o Nederland, que não gostava de seguir, preferia ser seguido; fazia chover e secar depois; mandava morrer e viver de novo; orientava o sol e a lua de sua bolha de superioridade, amparado por uma autoimagem generosa; enfim, não era um homem acostumado a ser impedido de fazer o que quisesse.

A mãe sacudiu os ombros do filho, ansiosa com sua ansiedade, e lhe estapeou a gola da jaqueta repetidamente, indicando os velhos com a cabeça. O Nederland largou a chave do carro em cima do balcão e já sacou celular e carteira. O novato do caixa considerou as possíveis mediações para o conflito que se desdobrou à sua frente. A pouca experiência soprou uma resposta ao seu instinto incipiente: de polegar amassado contra indicador, piscou para a cliente da vez, pedindo uma anuência tão opcional quanto a colaboração para o caixinha dos empregados, e voltou-se inteiro ao, vai que era, amigo dos patrões.

Jonathan gostou de ver que o Usain Bolt possível era do seu tamanho e, assim, passou a odiar tudo que via nele: o rosto de traços harmoniosos, a cútis bem hidratada, o olhar de sono, a jaqueta mais cara que a sua, o bigode delineado em alguma barbearia chique, o topete, a chave do carro, o carro que ele tivesse estacionado lá fora, os amigos, o celular de tela grande, os óculos escuros pendurados num passante das calças skinny pretas.

Ô, campeão.

Pode ser no débito, querido.

O cara esticou o cartão ao novato, naturalizando o desrespeito, preparado para continuar invicto na vida. O pessoal se comoveu, começou a se olhar de lado. Então uma janela de afeto se abriu, um mar de possibilidades amorosas: Lúcia surgiu lá na frente da fila, escondida entre os ombros dos pais e irmãos, linda como desde o começo do ano passado, tímida como sempre. Jonathan aproveitou a brisa boa para se inflar ainda mais: se não tinha fé de que algum dia conseguiria impressionar a menina com boas notas, com extraordinárias habilidades atléticas, com os segredos da boa convivência na escola e nem com, ué, algum charme pessoal, que fosse na base da porrada. Era hora de começar a criar a história que contariam aos netos e a todo jovem que se dispusesse a ouvi-los quando os velhos do mundo fossem eles, quando tivessem bodas de ouro para comemorar, quando escolhessem juntos algum plano funerário para a família, quando partilhassem a mesa em algum churrasco de domingo, a cada faxina que fizessem quando morassem sob o mesmo teto. Ela arregalou os olhos, surpresa com a irritação do colega e com seu timbre porque, se bem lembrava, nem conhecia sua voz.

Eu tô falando com você, jaquetinha.

A mãe segurou o filho pelos dois braços, mas ele recuou num passo e ajustou as pernas em base de luta, levantando as mangas e ajeitando o penteado.

Respeita sua mãe, Jonathan, volta aqui.

O Nederland virou o rosto e emprestou metade da atenção ao agito.

Baixa bem a bolinha, moleque, ouve tua mãe.

Os velhos embarreiraram o menino, contendo a animosidade, e pediram a Nederland para que voltasse ao lugar que lhe pertencia, não tinha problema pegar fila, ninguém precisava atrapalhar ninguém, ninguém precisava brigar com nenhuma criança em nenhum restaurante.

É, faixa-preta: volta pra eu não limpar esse chão com sua cara.

Cê quer confusão?

E se eu quiser? – empurrando o velho que estava mais perto, fazendo-o tropeçar nas barras das próprias calças.

Dois outros velhos cobraram o que sentiam ter a receber e empurraram Jonathan de volta, em vingança. Outros clientes separaram a briga secundária e reagruparam ao redor do menino, meio por interesse na baderna principal, meio para fazer coro ao pedido de que a ordem de pagamento fosse respeitada, todo mundo tinha a mesma pressa. Mas agora o Nederland não queria saber de pagar ou não, queria resolver um problema pessoal.

Então vamo lá fora, piazinho.

Até melhor pra massagear teu cérebro com teu narizinho, bonitão. Cê só foge desse atraso se tiver uma UZI no porta-malas. Cê já tomou facada, infeliz?

Os velhos imploraram para Nederland sair, ele que entrasse no carro e voltasse ao escritório, mais tarde conversavam, que deixasse a conta para os remanescentes, eles dividiriam numa boa. Ele acatou e andou para fora apontando os olhos do menino com indicador e dedo médio, de braço reto, queixo recolhido ao peito. Jonathan, enclausurado por desconhecidos, inspirava e expirava, cada vez menos interessado em briga, cada vez mais atento aos sinais de sua musa, tão perto e ainda tão longe de seus carinhos.

 

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Marco Antonio Santos

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Escala de Baumé 0 5045

Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Vida comum parte 1 0 5193

Vida comum parte 1

Véspera de feriado, antes da meia-noite e eu já com meia garrafa de conhaque na mente. Curtia me derreter no gole, de dose, de lata, de garrafa, de todo jeito. No feriado rolou um churrascão que nem lembro se comi, dropei umas caipiras antes de acender o fogo e fiquei mais preocupado com a temperatura das garrafas que da carne. Sábado a ressaca com a mão pesada, tava batendo forte, contra-ataquei com uns latão, encostado nos fundos do posto com a rapeize, só flagrando os doidinho tirando uns racha de Parati, Chevette e Gol Chaleira. Domingo rolou rave na região metropolitana, no meio do mato, não virava ir de bonde, botei uma gasolina na Bizz e meti o pé; duas carteiras de Minister depois já tinha descido whisky com energético, vodka com suco, vários ampola, um doce e umas água colorida que os parceiro botaram, sei lá qual fita, puta gosto de remédio. Bati a nave antes da hora, cheguei em Grayskull sem nem aproveitar a viagem, ensaiava falar e não saia voz, tava tenso, me mordendo, fiquei nervoso: deu bad. Tentei endireitar a caminhada tomando umas águas, mas não rolou, a conta não batia, os dentes rangendo, coração agitado querendo se mudar do peito. Precisava voltar pra minha goma, tomar um banho, talvez dois, sei lá, só precisava vazar, montei na moto e fui. Tava com dois IPVA atrasados, cabreiro de cair numa blitz, e se soprasse um bafômetro explodia a máquina – certeza. Queria chegar logo, entrei no modo Valentino Rossi e corri a milhão, como se fosse fuga. Foi aí que deu ruim no piloto automático, se pá que dormi em cima do jato, lembro só de uns clarão, uns flash. Vi o céu por baixo, deitado no asfalto, sei lá qual fita, tudo nublado, que dia bosta. Me liguei e já tava todo remendado no hospital, numa sala com umas vinte cabeça, todo mundo fudido, uns mais outros menos. Eu? Era cabeça de chave do grupo dos desgraçados: com a lata do frankstein, olho roxo, cara inchada, nariz quebrado, uns ponto na testa. Trinquei uma costela e quebrei outras duas, a clavícula rachou e a mão tava na carne viva. O médico foi desenrolando essa lista aí e eu aceitando na moral, os pensamentos embaçados, cheio de analgésico, todo bagunçado de dor. Aí teve uma mão que ele deu uma pausa, ficou mais bolado e mandou A real: disse que eu sofri um choque cabuloso no quadril, perdi mais de 80% do fígado, que num tinha como dizer o tamanho real do estrago, mais uma fita era certa, nunca mais ia poder beber, se tomar meia lata que seja, posso encomendar o caixão. Acordei umas três vezes crente que tava tendo um pesadelo, foquei umas horas que tava numa brisa errada de doce. Mas não. A vida é uma viagem desgraçada.