
Introdução à Filosofia Contábil estava o porre de sempre, então a princípio até gostei de sentir o celular vibrar no bolso. Olhei pra baixo e conferi o recado. A professora Luzia que me perdoe, mas qualquer coisa era melhor que correlações científicas. Qualquer coisa mesmo, inclusive mais uma mensagem alucinada do meu marido. O Alfredinho nunca soube trocar uma fralda sem me consultar se estava fazendo tudo certo, pra ilustrar a dependência. Ele não sabe sequer onde deixa os sapatos que tira, então não cobro demais dele, porque não dá pra cobrar muito dos ignorantes, e se Deus os aceita e perdoa, quem sou eu pra contestar? Hoje me arrependo de não ter percebido na hora que a historinha cheirava mal, e olha que já tínhamos conversado sobre a grosseria que é gritar em caps lock:
– Tô aqui na frente, PODE SAIR?????? GANHEI NA QUINA!!!!!
– Que papo é esse?
– R$ 500 mil, Quina, esse papo. Vem, TAMO RICO!!!!!!!!!!!!
Veja, eu conheço o Alfredo, e queria muito conhecer o poder dessa grana preta pra resolver a vida, pra sair do aluguel pela porta da frente, pra quitar as reformas do nosso Opala, pra ajudar um ou dois parentes mais estropiados, pra suprir algumas faltas que nos massacram. E os quinhentos mil dessa época rendiam bem mais que os de hoje, e ilustro meu ponto lembrando que o Kléber Bam Bam tem parte do que ganhou no BBB um até hoje. Seria a famosa mão na roda, ou várias mãos em várias rodas, como se a gente conseguisse lubrificar todas as engrenagens de uma só vez. Mas claro que fiquei meio assim. É que isso já foi depois de dois anos de namoro, dois de noivado que os pais dele resumiram como “enrolação” e, naquela época, já nos debatíamos com um quarto-ano-adentro de casados. Eu grávida, Rosa a caminho, e me aparece uma alopração dessas? Ele sempre foi meio doidinho. Depois o tempo me vacinou pra não cair em qualquer bobice do homem que amo.
E tem também que em coração de mãe cabe sempre outra criança pra cuidar, e a criança pode ter qualquer idade. Resolvi pagar pra ver. Levantei pra sair da sala com o caderno e uma caneta numa mão, pendurei a bolsa no outro braço e planei reto no corredor entre as fileiras de carteiras. Sussurrei “questão familiar”; a professora mirou minha barriga e sorriu, achando que sabia com que criança eu estava lidando, aí me olhou nos olhos e não disse nada, autorizando a saída com a mão esquerda, bem sei lá. A ementa, de forma geral, não passava de um emaranhado ilógico e a disciplina, de forma específica, era como uma tortura intelectualizada, uma coisa meio KGB, Tetris, Sibéria, mas enfim: Luzia comprar minha balela já estava mais que bom, dadas as circunstâncias.
Lavei o rosto, molhei o bico e enchi a garrafinha de água. Imaginei que o Alfredo ia precisar, porque ele parecia eufórico, radiante, meio cheirado mesmo. Conheço a pecinha rara com quem me encaixei. A despeito de uma miopia contra a qual nunca me defendi, consegui identificar o carro no estacionamento escuro, com um par tristeza-&-premonição de nuvens cinzas nos encimando. Quem me ajudou na busca foi o Léo Santana, que deu o tom da derrota a partir dos falantes grandes e caros que o meu eterno garotão mandou instalar quando caiu uma grana que nunca entendi daonde. Fiquei feliz de sentir cheiro de banho, porque andava um pouco raro, e ainda tinha um certo cheiro amadeirado no ar, certamente inédito. Já de cinto passado, funguei de queixo erguido. Ou o bendito abriu um Avon que comprei na promoção pra vender no meu preço quando ficar mais caro na revistinha, ou então ele já tinha gastado mal a grana que ainda nem tinha pra tentar me impressionar.
E foi meio deprê, porque ele nem se deu o trabalho de puxar o papo. Só esticou o suposto bilhete da alforria e ligou o carro, vestindo um sorriso longo. Pelo treme-treme, não consegui ler foi nada. Perguntei:
– Que quinhentos mil, Alfredo? E você lá joga em Quina?
– Faz dez aninhos, meu amor; cento e vinte cinco meses; quinhentas semanas. Sabe o que é isso? Sabe o que são dez anos tostando dinheiro? E não espalho ou te encho com isso porque é um trabalho de fé. Preferi esperar uma surpresa boa dessas que te encher com buxixo de bastidores, até porque você não é a Sônia Abrão. No fim deu certo, olha aí.
– Já vi um bilhetinho aqui e ali, tirando dos seus bolsos na hora de lavar a calça, mas não sabia que era assim…uma coisa sistemática.
– Sempre, sempre. Agora acabou a paz. Já tô avisando, vai vendo. Vou mandar meu coordenador pastar, mas olha, amanhã mesmo. Ou hoje; dá pra chegar em casa, abrir uma latinha e já soltar logo um e-mail-papo-reto pra ele ficar ligeiro. Tô fora. Mas ó, vê só, a gente tem que gastar direito, senão evapora, abracadabra, babau dinheiro.
Ele segurou a emoção num sinal amarelo. O semáforo iluminou meu colo, então aproveitei pra mirar bem o papel. Ai, as ilusões. Fim de papo. Bom seria se eu tivesse saído da aula por alguma coisa que valia a pena. Bom seria que eu não tivesse me apaixonado por um cara que sempre foi incorrigivelmente lesado das ideias. Bom seria se todo aquele circo tivesse fundamento na realidade. Mais um duro golpe do destino:
– Meu amor, não queria derrubar seu castelinho, mas esse jogo é de semana passada. Não tem como ganhar hoje com esses números, coração.
– É o quê?
– O que que eu faço contigo, hein?
– …
– Te esgano ou dou um beijo?
O Povo da Loteria daria risada se soubesse do nosso caso. E eles devem saber, porque o Governo vigia quem joga, como um vídeo que vi no zap prova. Falou governo, falou de sonho de pobre esmagado. Naquela noite, eu e Alfredo conversamos menos. Silenciei sobre essa coisa por um belo semestre, tentando perdoá-lo pelo susto. Não se faz isso com uma grávida se sete meses. Foi toda uma situação.