
Faz um dia ameno de sol, no contexto de um período chuvoso no inverno de Curitiba; é fim de mês e o dinheiro rareia. A vontade de comer bem e em demasia logo após o apetite ser aberto por um bigode de grilo, sem despender grandes investimentos, me carrega à um dos mais tradicionais restaurantes da cidade: Cantina Açores. Chego mais para o fim do turno do almoço, com a luxuosa possibilidade de escolher onde me sentar – duas horas atrás, é bastante provável que algumas pessoas estavam organizando pequenos motins para conquistar os poucos lugares vagos – a mesa que recebe um feixe de luz solar me convida à habitá-la, apesar de ocupar um espaço mais ao fundo do salão, e que a essa hora é quase oculto aos olhares desatentos dos atendentes (que são os donos) do lugar.
Na primeira mesa chega um casal que parece ter uma amizade próxima com os proprietários, o cardápio de cervejas (que surpreendentemente existe) demora à chegar nas mãos deles, é entregue pela sua amiga, que trava um intenso monólogo travestido de diálogo. Quando enfim eles conseguem focar sua atenção no menu, a atendente oferece, enquanto já serve, uma generosa taça da batidinha especial da casa; antes que eles possam aceitar, a taça chega à mesa já desfalcada de um respeitável gole. Enquanto contemplo a batidinha alheia – mais uma novidade pra mim, que me considerava um habitué do recinto – minha existência é enfim notada, faço contato visual, olho no olho, mas pouco comovo; ergo minha mão com timidez, na altura do queixo, um aceno de cabeça em resposta é o código de que tudo foi compreendido. Explico que por hora não vou pedir a refeição, afinal o Marco ainda não chegou, peço uma garrafa de cerveja e pergunto (já mal intencionado) “quanto custa a batidinha?”, “a batidinha é um agrado para os clientes, já te trago”. Fico contente ao notar que as bordas da taça não denunciam nenhum gole no caminho da geladeira até minha mesa. Provo a iguaria e me abalo, entro no meio de uma batalha, o maracujá disputa violentamente o espaço com o álcool, tenho sede em apaziguar logo esse embate.
Da mesma forma que os rituais são representados nos filmes, quando se oferece algo à alguma entidade e ela se materializa instantaneamente na sua frente, vejo o Marco adentrar ao recinto assim que repouso o copo de cerveja à mesa. E apesar da existência do Marco ter quase dois metros de altura, ela também é notada com certo atraso pelos garçons, mas tudo fica bem quando quem vem tirar o pedido já se aproxima com um copo na mão; das vantagens de se almoçar em um boteco. O prato do dia é Parmegiana, de frango ou bovino, democraticamente optamos por escolhas distintas, em comum uma porção de batata frita e mais uma cerveja, afinal, é sexta-feira.
A salada, que certamente já estava pronta desde as onze, chega antes que possamos re-abastecer nossos copos. Tomo a decisão pouco sábia de ignorá-la, enquanto ouço sobre a última que rolou no prédio do Marco, que me é confidenciada em tom tenso e humorado: o síndico do seu prédio sofreu um impeachment. O golpe foi orquestrado por um morador que chegou há menos de três meses no condomínio, uma espécie de Eduardo Cunha do 301C. Além de cativar o coração dos moradores que vislumbraram a destruição do jardim em lugar de novas vagas para carros, o golpe foi amplamente apoiado pela bancada evangélica do condomínio, que implicavam com as camisetas do Iron Maiden do ex-síndico. O porteiro ouviu dizer em modernização no sistema de interfones e novos circuitos de monitoramento; ele já teme pelo seu emprego. Em todas as esferas, vivemos tempos sombrios.
Desembarca em nossa mesa a porção de batata frita, naufragada em óleo, meu coração reclama logo na segunda garfada, me finjo de desentendido e interpreto como forte emoção. Uma discussão acalorada se instaura entre os funcionários, pouco parece ter relação com o trabalho, bastante com o possível almoço de domingo em família. Ecoam por todo lugar palavrões associados à verbos que nem imaginava que podiam ser usadas para ofender. Assim que os ânimos se acalmam, nossa amiga vem à mesa munida da garrafa de batidinha, veio conferir se estamos sendo bem atendidos: um novo consenso declara que sim, como nunca. O filé, que mal cabe no prato, vem acompanhado de arroz, macarrão, chuchu e farofa; o estado de confusão total no universo é evitado com o feijão sendo servido numa cumbuca separada. É necessário saber no mínimo oito movimentos no xadrez para traçar uma estratégia digna para a degustação do banquete, numa ação cautelosa o feijão se funde à farofa, bem planejado cabem até umas batatas (aquelas) ao lado do bife. Sou um homem de projetos ousados.
Vejo-me refletido no fundo do prato, aliança da alvura da louça com vestígios de gordura, e um sorriso cansado denuncia o sucesso na empreitada. O tempo segue estável lá fora, já aqui dentro deveria chover papel picado, pois o sentimento é de fim de campeonato e todos sagraram-se campeões. Completamos a volta olímpica até o balcão, onde a contabilidade que é feita no guardanapo não falha: pouco mais de vinte reais pela comida, bebida e workshop de novos xingamentos, ministrado pela dona da casa. Justo, nem preciso fazer figas com os dedos – para torcer pelo saldo positivo – quando a máquina engole meu cartão. Pego uma bala de iogurte no balcão e vou embora desejando uma vida tão honesta quanto um almoço na Cantina Açores.
Escrito pelo Gabriel Protski