Cantina Açores 0 2668

Faz um dia ameno de sol, no contexto de um período chuvoso no inverno de Curitiba; é fim de mês e o dinheiro rareia. A vontade de comer bem e em demasia logo após o apetite ser aberto por um bigode de grilo, sem despender grandes investimentos, me carrega à um dos mais tradicionais restaurantes da cidade: Cantina Açores. Chego mais para o fim do turno do almoço, com a luxuosa possibilidade de escolher onde me sentar – duas horas atrás, é bastante provável que algumas pessoas estavam organizando pequenos motins para conquistar os poucos lugares vagos – a mesa que recebe um feixe de luz solar me convida à habitá-la, apesar de ocupar um espaço mais ao fundo do salão, e que a essa hora é quase oculto aos olhares desatentos dos atendentes (que são os donos) do lugar.

Na primeira mesa chega um casal que parece ter uma amizade próxima com os proprietários, o cardápio de cervejas (que surpreendentemente existe) demora à chegar nas mãos deles, é entregue pela sua amiga, que trava um intenso monólogo travestido de diálogo. Quando enfim eles conseguem focar sua atenção no menu, a atendente oferece, enquanto já serve, uma generosa taça da batidinha especial da casa; antes que eles possam aceitar, a taça chega à mesa já desfalcada de um respeitável gole. Enquanto contemplo a batidinha alheia – mais uma novidade pra mim, que me considerava um habitué do recinto – minha existência é enfim notada, faço contato visual, olho no olho, mas pouco comovo; ergo minha mão com timidez, na altura do queixo, um aceno de cabeça em resposta é o código de que tudo foi compreendido. Explico que por hora não vou pedir a refeição, afinal o Marco ainda não chegou, peço uma garrafa de cerveja e pergunto (já mal intencionado) “quanto custa a batidinha?”, “a batidinha é um agrado para os clientes, já te trago”. Fico contente ao notar que as bordas da taça não denunciam nenhum gole no caminho da geladeira até minha mesa. Provo a iguaria e me abalo, entro no meio de uma batalha, o maracujá disputa violentamente o espaço com o álcool, tenho sede em apaziguar logo esse embate.

Da mesma forma que os rituais são representados nos filmes, quando se oferece algo à alguma entidade e ela se materializa instantaneamente na sua frente, vejo o Marco adentrar ao recinto assim que repouso o copo de cerveja à mesa. E apesar da existência do Marco ter quase dois metros de altura, ela também é notada com certo atraso pelos garçons, mas tudo fica bem quando quem vem tirar o pedido já se aproxima com um copo na mão; das vantagens de se almoçar em um boteco. O prato do dia é Parmegiana, de frango ou bovino, democraticamente optamos por escolhas distintas, em comum uma porção de batata frita e mais uma cerveja, afinal, é sexta-feira.

A salada, que certamente já estava pronta desde as onze, chega antes que possamos re-abastecer nossos copos. Tomo a decisão pouco sábia de ignorá-la, enquanto ouço sobre a última que rolou no prédio do Marco, que me é confidenciada em tom tenso e humorado: o síndico do seu prédio sofreu um impeachment. O golpe foi orquestrado por um morador que chegou há menos de três meses no condomínio, uma espécie de Eduardo Cunha do 301C. Além de cativar o coração dos moradores que vislumbraram a destruição do jardim em lugar de novas vagas para carros, o golpe foi amplamente apoiado pela bancada evangélica do condomínio, que implicavam com as camisetas do Iron Maiden do ex-síndico. O porteiro ouviu dizer em modernização no sistema de interfones e novos circuitos de monitoramento; ele já teme pelo seu emprego. Em todas as esferas, vivemos tempos sombrios.

Desembarca em nossa mesa a porção de batata frita, naufragada em óleo, meu coração reclama logo na segunda garfada, me finjo de desentendido e interpreto como forte emoção. Uma discussão acalorada se instaura entre os funcionários, pouco parece ter relação com o trabalho, bastante com o possível almoço de domingo em família. Ecoam por todo lugar palavrões associados à verbos que nem imaginava que podiam ser usadas para ofender. Assim que os ânimos se acalmam, nossa amiga vem à mesa munida da garrafa de batidinha, veio conferir se estamos sendo bem atendidos: um novo consenso declara que sim, como nunca. O filé, que mal cabe no prato, vem acompanhado de arroz, macarrão, chuchu e farofa; o estado de confusão total no universo é evitado com o feijão sendo servido numa cumbuca separada. É necessário saber no mínimo oito movimentos no xadrez para traçar uma estratégia digna para a degustação do banquete, numa ação cautelosa o feijão se funde à farofa, bem planejado cabem até umas batatas (aquelas) ao lado do bife. Sou um homem de projetos ousados.

Vejo-me refletido no fundo do prato, aliança da alvura da louça com vestígios de gordura, e um sorriso cansado denuncia o sucesso na empreitada. O tempo segue estável lá fora, já aqui dentro deveria chover papel picado, pois o sentimento é de fim de campeonato e todos sagraram-se campeões. Completamos a volta olímpica até o balcão, onde a contabilidade que é feita no guardanapo não falha: pouco mais de vinte reais pela comida, bebida e workshop de novos xingamentos, ministrado pela dona da casa. Justo, nem preciso fazer figas com os dedos – para torcer pelo saldo positivo – quando a máquina engole meu cartão. Pego uma bala de iogurte no balcão e vou embora desejando uma vida tão honesta quanto um almoço na Cantina Açores.

Escrito pelo Gabriel Protski

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Escala de Baumé 0 4830

Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Chegada 0 6368

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, prepare a casa
e meu coração pulou afora
bateu amor por toda a cidade

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Ela está vindo!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, mas levo ainda um pouquinho
e antes de te ter em meus braços
já tenho em todos os sonhos do mundo

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Minha menina vai chegar!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, já não falta mais tanto
e prevendo as noites com você,
me vejo em claro sonhando

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Vou ser pai