A bolsa de llama da Paris Hilton 1 976

escrito por André Petrini.

Yasmin olha de um lado para outro, tentando não disfarçar o quanto aquele jantar pomposo lhe soa enfadonho, cercada de gente que preferia não ter conhecido, comendo com delicadeza demais, bebendo drinks caros demais, servidos por mulheres com roupas curtas demais. Justo ela, que sonhava com a vida simples, encantada pelos contos da juventude mineira de sua mãe.

Sente-se perdida entre um sorriso e outro que força como sinal de respeito ao seu novo namorado, que embora a tenha metido no meio dessa ladainha de artificialidades, ainda parece melhor do que aguentar a indecisão e a grosseria do ex. A verdade é que qualquer homem que tivesse um mínimo de cavalheirismo ou, menos ainda, que fosse respeitoso o suficiente para não arrotar antes de beijá-la já estaria em vantagem com o tosco que fora seu companheiro. Tudo bem que a vida rústica tem lá seus encantos, mas nem mesmo as amazonas dormem com seus cavalos.

Se antes Yasmin flertava com porcos, agora se sentia acuada pelos jacarés nas polos ao seu redor, em mais um dos jantares promovidos para aquela casta mostrar a si mesma o quanto seus membros eram ricos e ignorantes. Não que esse fosse o motivo de fato, mas Yasmin se comprazia com essa ideia e em sua intimidade batizava o grupo com nomes como “bastardos abastados” ou “polentas opulentas”, conforme seu humor na noite, embora sentisse um apreço especial e acabasse sempre optando por “mimados afortunados”.

Quando não estava imaginando nomes diferentes para os burgueses, passava o tempo criando diálogos em sua cabeça, arquitetando a ofensa ideal para cada um dos sujeitos, apontando as plásticas malfeitas em suas faces e furando os silicones das madames, mas invariavelmente acabava todas as cenas com um triunfal “Espero que a Receita Federal confisque seu passaporte!”, e todos se desesperavam com a simples ideia de não poder sair das terras tupiniquins, infestadas de taxas de importação. Mas esta noite caminha particularmente fatigante e nem seu ócio criativo consegue animá-la. Olha para o relógio, para a porta, para o celular, para a televisão, mexe no guardanapo, agita a perna, olha de novo para o relógio e não passou nem um minuto. Ainda pior que essa afronta do tempo é a constatação de que os abonados continuam a discutir se a Disney de Orlando é melhor ou não do que a de Paris. Quase que no mesmo instante ─ se um segundo antes ou depois, não importa ─ uma voz empolgada vem ao fundo se fazendo notar por todo o restaurante: “Vocês estão falando da Paris Hilton? Viram que luxo aquela bolsa de llamas que ela estava usando semana passada?”. O leitor há de se espantar, mas não por muito tempo, ao saber que essa é a expressão que faz Yasmin despertar daquele véu de futilidades.

Assim como para cada filho fazendo bagunça entre os convidados há uma mãe correndo atrás desesperada, para cada frase há também sua dona, que agora está a voltar de uma longa demora no banheiro, consumindo todo tipo de entorpecentes que a ajude suportar a si mesma. A Barbie Escandalosa é uma loira com cabelo esbranquiçado, pele bronzeada além do saudável e lábios preenchidos com a famosa toxina botulínica ─ o melhor amigo das moças que não querem sentir a vida pesar quando a juventude passar.

Voltando à frase ─ esta sim importante para os nossos fatos ─, a ninguém mais pertence e para a maioria dos presentes já se vai perdida nos dizeres do passado, mas continua ecoando no íntimo de Yasmin. “Bolsa de llamas? De llamas? Llamas! Peru! Machu Picchu! América do Sul! Mochilão! Cuba! Che Guevara! Comunismo! Política! Filosofia! MEU DEUS, O QUE EU ESTOU FAZENDO AQUI?”. Pelo silêncio na mesa e olhares espantados, a última parte parece ter sido um pouco mais alta que seus pensamentos. Tem coisas que não se pode ─ e os psicólogos dirão que nem mesmo se deve ─ guardar. É como o sol da manhã que chega sem pedir permissão e quando se vê já está a inundar o quarto com sua luz, a nos acordar do sono da noite anterior. Assim são os momentos que nos definem, e nem a âncora de marasmo que prendia Yasmin à mesa poderia evitar o tsunami de recordações. Lembrara-se das noites que sentava no meio-fio para tomar sorvete com seus colegas entre uma aula e outra, das idas ao litoral com os amigos de infância, dos planos de mochilão latino, da carteira de motorista que nunca tirara, da fascinação por Cuba, dos livros de filosofia que queria ler e talvez até entender, dos shows de música sertaneja, do pão de queijo quentinho da avó, e naquele momento sabia que sua vida não poderia continuar na mesma ressaca.

Percebendo que os olhares ricos continuavam a fitá-la, Yasmin profere a única frase que vem à mente e, para seu espanto e alegria, é diferente do que sempre imaginou dizer. Citando Oscar Wilde com toda a convicção de quem está definindo o rumo da própria vida, esclarece: “Vocês sabem o preço de tudo e o valor de nada”. Com elegância, limpa a boca no guardanapo e o coloca sobre a mesa, para então sair e não mais voltar.

Alguns instantes se passam até que os outros consigam voltar de seu coma induzido pela lucidez, e uma outra Barbie finalmente responde à amiga. “Ai amiga, achei um luxo mesmo! Pele de llama tá muito in!”

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Distante das Linhas de Nazca 0 1277

Thiago Orlando Monteiro

Alguns vazios aumentam sempre que tentamos preenchê-los. E geralmente, porque tentamos preencher com algo que não nos cabe, ou no mínimo não nos pertence.

Não há muito que se ver aqui em cima. Menos ainda há o que se orgulhar. O cinzeiro está transbordando de cigarros. Por cima da mesa são quatro maços vazios e mais um pela metade. Tem outro vazio que não dá pra ver, embaixo do sofá, mas isso é sobre outro dia. As latinhas de cerveja entulhavam a mesa de centro até agora pouco, agora só restam sete, as outras estão sobre a pia. São quatro e meia da manhã, não há mais tempo de se arrepender de nada.

O fluxo de ideias vem numa vertente capaz de mudar o curso de um rio. São dois furacões que espalham tudo o que acabaram de criar. Instantes após o caos a calmaria tenta se fazer presente. Mas não. Esse tipo de sentimento não é bem-vindo, não agora. O cartão de crédito transforma a pequena montanha em linhas. Tudo começa novamente. E só acaba um grama depois.

Nossos impulsos ruem nossa integridade. E como costuma acontecer, ruínas geram ruínas.

O nascimento do sol enfim consegue barrar o curso desse desastre natural. A sensatez, rara nessas condições, permite que três latas de cerveja descansem na porta da geladeira. Um banho quente ajuda a relaxar o corpo. Mas agora, nada é capaz de parar a mente. Já debaixo do lençol o coração bate como uma britadeira. O medo da vida toma conta outra vez. É curioso como tudo sempre lembra o seu contrário. Minha maior vontade era de não estar aqui. Perto de tudo o que me corrói e tão distante das linhas de Nazca.

Escrito pelo Gabriel Protski

Ilustrado pelo Tho

Carta a Hunter S. Thompson 0 1213

A temporada de futebol americano ainda não acabou. Ainda faltam bombas. Faltam andanças. Faltam confusões. Ainda falta muita diversão. Que venham mais 67. Mais 17. Que apenas venham. Mesmo que doa. Mesmo que canse. Mesmo que seja obrigado a conviver com o gosto de cloro. Talvez isso não seja plano para mais ninguém. Não importa. Que sigam os jogos, a temporada está só começando.

 


 

Carta de suicídio de Hunter S. Thompson:

“A temporada de futebol americano acabou.

Chega de jogos. Chega de bombas. Chega de andanças. Chega de natação. 67 anos. São 17 acima dos 50. 17 mais dos que necessitava ou queria. Aborrecido. Sempre grunhindo. Isso não é plano, para ninguém. 67. Estás ficando avarento. Mostra tua idade. Relaxe. Não doerá”

 


 

Gabriel Protski