Página 54 0 859

Marco Antonio.

 

Essa revista é horrível.

Na página 54, um anúncio publicitário. A foto até que é bonita, com uma imagem composta em camadas. O visual, elegante, me faz lembrar de um seriado famoso da televisão.

No terceiro plano, mais distante, muita madeira. Móveis escuros e caros, iluminação fraca e amarelada. Há um diploma na parede, cuja moldura é bonita, mas não é possível afirmar de qual curso ele atesta o fim, porque tudo ali é desfocado, e as letras no papel são miúdas demais.

Segundo plano: homem de uns 45 anos, levemente grisalho e com a barba por fazer. Trajando roupa social, com a gravata afrouxada e a camisa amassada, passa a impressão de que acabou de chegar do trabalho, onde provavelmente dá mais ordens do que recebe. O conjunto formado por sorriso debochado e cabelo desalinhado avisa, mas o copo de bebida na mão esquerda afirma duas coisas: que ele é casado, e que ele está em um momento de descanso. Estão vendendo conhaque.

Primeiro plano: mensagem em destaque. As palavras “Perder é uma arte” me fazem refletir um pouco, devo admitir.

Devaneio. Vou. Volto. Volto. Volto.

Vou.

Devaneio mais. Ou menos.

Hora de pegar minha carteirinha do plano de saúde. A secretária já fez o que precisava com ela. Autografo um papel.

A revista segue com outros anúncios mais ou menos parecidos. Minha constatação é óbvia, mas válida: os produtos que eles vendem não são para mim. Mas, também, se eu levar em conta que as matérias e entrevistas que aparecem nessas páginas nada tem a ver com o meu estilo de vida, o fato de que tomei conhecimento da minha inadequação a este microuniverso diminui a minha dor. Ainda que não seja exatamente uma dor, isso o que sinto. Não tenho sentido novas dores. Nem novos ódios. O que tenho feito, sim, é medido a vida através de velhos limites, esperando por alguns novos objetivos. É o que posso fazer, mas estes novos objetivos não vêm nunca, aparentemente. Cancelaram a visita e não me avisaram.

Sobre ódios antigos, digo o de sempre: odeio esperar. Ainda mais em consultórios médicos. Odeio música easy listening. E odeio outras coisas que, de fato, valem a atenção.

Esse cenário não faz sentido. Essa revista, também não. Mas, como representação de um aspecto da vida, este pequeno circo simboliza bem o todo das coisas, das situações e dos dias ao qual se refere.

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Distante das Linhas de Nazca 0 1277

Thiago Orlando Monteiro

Alguns vazios aumentam sempre que tentamos preenchê-los. E geralmente, porque tentamos preencher com algo que não nos cabe, ou no mínimo não nos pertence.

Não há muito que se ver aqui em cima. Menos ainda há o que se orgulhar. O cinzeiro está transbordando de cigarros. Por cima da mesa são quatro maços vazios e mais um pela metade. Tem outro vazio que não dá pra ver, embaixo do sofá, mas isso é sobre outro dia. As latinhas de cerveja entulhavam a mesa de centro até agora pouco, agora só restam sete, as outras estão sobre a pia. São quatro e meia da manhã, não há mais tempo de se arrepender de nada.

O fluxo de ideias vem numa vertente capaz de mudar o curso de um rio. São dois furacões que espalham tudo o que acabaram de criar. Instantes após o caos a calmaria tenta se fazer presente. Mas não. Esse tipo de sentimento não é bem-vindo, não agora. O cartão de crédito transforma a pequena montanha em linhas. Tudo começa novamente. E só acaba um grama depois.

Nossos impulsos ruem nossa integridade. E como costuma acontecer, ruínas geram ruínas.

O nascimento do sol enfim consegue barrar o curso desse desastre natural. A sensatez, rara nessas condições, permite que três latas de cerveja descansem na porta da geladeira. Um banho quente ajuda a relaxar o corpo. Mas agora, nada é capaz de parar a mente. Já debaixo do lençol o coração bate como uma britadeira. O medo da vida toma conta outra vez. É curioso como tudo sempre lembra o seu contrário. Minha maior vontade era de não estar aqui. Perto de tudo o que me corrói e tão distante das linhas de Nazca.

Escrito pelo Gabriel Protski

Ilustrado pelo Tho

Carta a Hunter S. Thompson 0 1213

A temporada de futebol americano ainda não acabou. Ainda faltam bombas. Faltam andanças. Faltam confusões. Ainda falta muita diversão. Que venham mais 67. Mais 17. Que apenas venham. Mesmo que doa. Mesmo que canse. Mesmo que seja obrigado a conviver com o gosto de cloro. Talvez isso não seja plano para mais ninguém. Não importa. Que sigam os jogos, a temporada está só começando.

 


 

Carta de suicídio de Hunter S. Thompson:

“A temporada de futebol americano acabou.

Chega de jogos. Chega de bombas. Chega de andanças. Chega de natação. 67 anos. São 17 acima dos 50. 17 mais dos que necessitava ou queria. Aborrecido. Sempre grunhindo. Isso não é plano, para ninguém. 67. Estás ficando avarento. Mostra tua idade. Relaxe. Não doerá”

 


 

Gabriel Protski