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Terceira multa em quarenta minutos, o dia estava agitado para Bianca e ela gostava disso. Era o sétimo mês trabalhando como periquita da Setran e a moça se divertia como em nenhum outro de seus empregos anteriores. Sentia prazer em multar – ela dizia “Gosto de dar multa porque é tipo um poder que eu tenho pra poder fazer um pouco de justiça”, e a jovem achava que era uma causa nobre. Mas enquanto transitava ensolarada por entre os carros, obstinada na busca pelo quarto infrator estacionado em vaga irregular naquela manhã, Bianca foi atingida por uma bicicleta e caiu de bunda no chão. Nada muito grave, exceto um roxo enorme na nádega esquerda e um baita constrangimento.

Carlos Eduardo, mais conhecido como Cadu, comemorou. Passou ao lado bem na hora, riu, desacelerou e gritou “Tinha era que ter sido um caminhão!” antes de seguir seu trajeto para entregar uns currículos no Campina do Siqueira. Ele não queria que ela se machucasse de fato, longe disso, mas odiava o ofício das moças que multavam. Achava que elas só serviam pra tirar mais dinheiro de quem não tem, e achou especialmente engraçado o fato de a moça ter sido atropelada por uma bicicleta, veículo que atrapalha o trânsito, desacelera os trajetos e nunca precisa pagar multa, “Um absurdo”. Dias antes, foi Cadu quem quase se chocou com uma bicicleta, desceu da moto e se engalfinhou com o ciclista enquanto gritava “Filha da puta! Tem que respeitar o motor!”. Em meia-hora de treta, o rapaz ganhou algumas escoriações e perdeu o prazo de uma entrega e o emprego.

A demissão dele foi a grande alegria do mês para Jorge, ex-colega e maior rival de Cadu na empresa de logística onde trabalhavam juntos. Aos amigos mais chegados, ele passou o dia do desligamento do inimigo repetindo como mantra a frase “Cada um colhe o que planta”, com um sorrisinho preso no canto da boca. O ódio nascera de uma ocasião em que Jorge faltou ao trabalho, e espalhou-se à boca pequena que a ausência se deu graças a uma ressaca violenta, devida a excessos na noite anterior. O fofoqueiro, segundo um dos mais chegados, teria sido Cadu. Sobre a falta, na verdade, a culpa era de um abuso diferente: Jorge passou uma noite e mais algumas horas na cadeia, por conta de um baseado que fumava em um coreto perto de casa, que chamou a atenção de alguns vizinhos e, consequentemente, da polícia. E, na verdade, também, não havia sido Cadu o responsável por espalhar a notícia, mas sim um dos mais chegados. Acabou dando tudo certo, pois Jorge tinha um cunhado médico da rede pública, que lhe arrumou um atestado e garantiu a manutenção de seu emprego. A única consequência, além dos dois meses de serviço comunitário, foi a alcunha de Bob Marley, que o rapaz odiava.

Não foi a primeira vez que Enzo teve de tirar Jorge de alguma enrascada. A outra foi quando o guri precisou fazer um exame toxicológico, devidamente comunicado com antecedência, mas fumou maconha na noite anterior. Enzo teve que mexer pauzinhos e fazer alguns contatos para trocar a urina de Jorge pela de alguém limpo – no caso, ele mesmo. Odiava esse hábito do cunhado, mas estava perdidamente apaixonado por Adriana e ela era meio superprotetora com o irmão mais novo. O médico ajudou mas foi à forra: em várias ocasiões fez questão de avisar “Você me deve uma, safado”, ou colocar Jorge em seu lugar, com alguns “Me respeita, rapaz… Quando precisar de mais mijo cê vai ver só”.

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Algumas semanas depois, Enzo precisava pagar a conta do condomínio, que iria vencer naquele dia e era acrescida em 10% do valor, caso quitada com atraso. No desespero, apesar dos 17 pontos já comprometidos na CNH, estacionou em vaga de deficientes. Pagou o boleto correndo e voltou a tempo de ver uma periquita da Setran ser atropelada por uma bicicleta, menos de uma quadra pra lá do carro. Sorriu e não conseguiu deixar de soltar baixinho um “Porra, Deus é top demais mesmo”.

 
 

texto de Rômulo Candal

ilustração de Friedrich Wilhelm Schmuck, datada de 1683.