Recreio em uma escola municipal, três anos atrás.
Era junho e o frio tinha começado a incomodar, o que fazia todo mundo ficar meio desconfortável e se vendo forçado a tirar as peças mais pesadas do guarda-roupa. Alunos, Pais & Mestres pareciam picolés, curiosamente. Todos meio duros dentro de toucas e jaquetas pesadas. Seria mais engraçado comentar este fato se todo mundo tivesse condições de ter roupas boas, mas isso não acontecia lá. Nós, da equipe da escola, fazíamos o possível para dar conforto a todos, permitindo que as crianças ficassem dentro das salas de aula nos piores dias.
Isa, Lu e Jé, as três de seis anos, saíram juntas da minha sala, como era rotina em todas as quartas-feiras daquele primeiro semestre letivo. Avisei do intervalo e elas começaram a se mostrar animadas através dos olhares que trocaram, por razões óbvias. Elas não gostavam da minha aula. Professora sabe quando o aluno é assim. Não me acho melhor que ninguém por gostar do que gosto, no caso matemática, ainda mais porque cada qual deve mesmo fazer o que quer, desde que aguente conviver com as consequências dos próprios atos. E embora as crianças não pensem nestes termos anteriores, elas também sabem de tudo, porque todo mundo sabe.
Quem forma nossos hábitos? Nossa Força de Vontade, ou sua irmã, a Apatia?
As três costumavam brincar de boneca num canto do pátio, inventando historinhas que às vezes contavam com príncipes encantados, às vezes não, às vezes contavam com provações e correria, aventura e griteiro, às vezes não etc. Nenhum colega existia para elas naqueles momentos. Parecia que elas gostavam mais de viver a imaginação que o normal da vida, caso esta divisão exista. Gosto desse método de uso do tempo – partindo da hipótese de que o tempo é mesmo algo utilizável como um objeto qualquer, tal como um garfo, uma régua ou um controle remoto.
Fiquei observando a cena. Estava tudo bem, até que a Lu decidiu acabar com a brincadeira. Ainda não tenho coragem de nomeá-la por extenso, o que é uma pena.
Interessa que ela era mal educada demais. Folgada, manhosa. Ainda bem que não preciso mais olhar para aquele rosto estranho e desafiador, cheio de perguntas, perdido. Em essência, acho que todos temos e somos nossos próprios desafios, estranhezas e descaminhos. Acho também que o problema do que penso ou não é inteiramente meu, pelo que peço licença, mas jamais desculpas.
A Demônia esperou as outras meninas se distraírem, pegou uma boneca sobressalente no contexto da fábula da vez e a escondeu atrás do bebedouro do pátio, ao lado de onde estavam. As outras duas quiseram usar, claro, exatamente aquela peça para alguma brincadeira por volta de quarenta segundos depois. Procuraram infrutiferamente pela região das pernas, atrás das lancheiras pequenas, e a sonsa então decidiu fingir que ajudava o grupo, Figura Má que era.
Observando o desespero das colegas, dirigi-me ao local e resolvi a situação, devolvendo o item ao lugar em que ele estava, tornando-o disponível novamente para o que quer que fosse.
Tenho ainda a imagem do olhar de desespero que Lu me lançou naquela hora. Ela não gostou do flagrante. Eu gostei um pouco, pelo que me arrependo.
O problema é que a perversidade dela naquela sequência de fatos denunciou a minha própria, já que só se lê em linguagem conhecida. Quanto ao desespero, foi ainda pior para mim. Desde então durmo mal, e às vezes chego a levantar para escrever nesse computador velho. Não funciona.
Marco Antonio Santos