Palavras sem letras 0 1103

mr Kawamura

Eu até entendo aquelas pessoas que leem diversos temas ao mesmo tempo e passam a limpo três, quatro livros em um mês. A esses leitores deixo aqui, antecipadamente, os meus aplausos. Imagino como essa habilidade deve ser útil e os deve deixar à frente de qualquer um. Eu não nasci com, nem desenvolvi tal sorte.

É claro que são fases também, dependendo da necessidade e da presença de espírito, dá até pra encarar umas leituras, digamos assim, mais dinâmicas. Enfim, o caso é que pelo terceiro ano consecutivo, na mesma época, nesses dias de fim de agosto e início de setembro, me vi encarcerado em um capítulo de livro. Pela terceira vez, só consegui atravessar o capítulo em questão após longas horas de leitura e releitura compulsiva. Obsessão? É possível que sim.

Deixando o drama de lado, talvez isso seja algo menos patológico e mais intuitivo. Apenas curiosidade. Uma busca mais intensa que perfura a epiderme da interpretação de texto e ganha volume na absorção do sentido. É quando você literalmente começa a entrar em um processo de enxergar palavras sem a necessidade de letras. Um animal desconhecedor dos signos, que apenas se orienta por sensações e sonhos. Como diz o trecho do poema de Miss Saeki:

You sit at the edge of the World
I am in a crater that’s no more
Words without letters

Esse poema se encontra justamente no trecho do capítulo ao qual permaneci preso por quase todo esse mês. É a vigésima terceira parte do romance ‘Kafka à Beira-mar’, do japonês Haruki Murakami. É nesse pedaço do livro, sem dúvida, que acontece o ponto de confrontação do herói. Porém, em um sentido mais poético e contemplativo. Não foi apenas gatilho para entronizar um certo desenrolar de acontecimentos em direção ao desfecho. Foi uma metáfora simples e muito reveladora. Uma chave que mudou a realidade. Fui Tamura, fui Nakata, fui Hoshino e, mais do que todos, fui o felino Kawamura. Grande livro de sonhos que me proporcionou um breve reencontro com aquela excitação das primeira leituras.

No início de setembro de 2016 aconteceu algo parecido. O livro era ‘O Mestre e Margarida’, de Bulgakov. Ucraniano-russo maldito! Bruxo do teatro. Rei das cenas impossíveis. Pai de Behemoth, o gato mais lokaum da literatura mundial. As pinturas desenhadas naquelas páginas até hoje habitam as profundezas dos meus sonhos. Por vezes, no ponto de ônibus ou pedalando minha bicicleta, com o vento batendo no rosto, fecho os olhos e vejo as paisagens e atos fantásticos que o velho Mikhail compôs e deixou registrados naqueles manuscritos que não arderam nas chamas. Coincidência ou não (pira influenciada pela baixa cultura de 2007 com aquele thriller com o Jim Carrey? Talvez), o capítulo deste livro que me aprisionou por mais de um mês foi também o de número vinte e três.

O grande baile do ‘mochila de criança’ – aquele que pesa nas costas dos inocentes – descrito por Bulgakov nesse capítulo me deixou tão obcecado que em uma noite, no fim daquele mês de setembro, me vi diante de uma cena muito parecida, que até hoje não tenho certeza se exatamente aconteceu. Era madrugada. Eu estava em frente a um estabelecimento comercial na Avenida Senador Souza Naves, quando de dentro de um táxi desceu um grupo de figuras extremamente semelhantes ao sombrio Woland e sua galerinha do mal. Não tive medo, mas um pouco daquele estresse me causou consequências permanentes. Sem contar que o encanto e a entrega de Margarida despertaram em mim uma paixão controversa.

Fechando (ou iniciando) o ciclo dos três anos de setembro emparedado, 2015 teve sua cota de obsessão. Acho até que, de todas, essa foi a fase mais onírica. Por esse motivo, acredito também que tenha sido a mais problemática das três compulsões.

O livro era ‘O Aleph’, do Borges. Foi meu primeiro contato com o sobrenatural. Fiquei exatos trinta e cinco dias desesperadamente trancado dentro do primeiro capítulo do exemplar que chegou até mim por intermédio de um empréstimo na Biblioteca Pública do Paraná. Renovei e atrasei pela segunda vez. Paguei multa apenas para mantê-lo mais alguns dias comigo e tentar compreender o que de fato aquele conto ‘O Imortal’ queria me dizer.

Naquele período, vivendo no Hauer e vindo ao Centro todos os dias de bicicleta, tive alucinações. Em uma dessas revelações, conversei com o centurião de Tebas, que tem a busca pela imortalidade desenhada por Jorge Luis de uma maneira (por vezes hermetista) veemente e cheia de significado. Sofri com o desapontamento de Cartaphilus. Porém, mais do que as questões filosóficas a respeito de vida e morte, sobre aventura e pesadelo, memória e admiração, o que Borges diz sobre o sentido e a importância das palavras foi a chave de libertação daquela cela:

“Quando se aproxima o fim”, escreveu Cartaphilus, “já não restam imagens da lembrança, só restam palavras”.

Palavras, palavras deslocadas e mutiladas. Palavras de outros, foi a pobre esmola que lhe deixaram as horas e os séculos.

Repito essas frases como um mantra todos os dias: só restam palavras, palavras deslocadas, palavras mutiladas. As visões desencadeadas pelo primeiro capítulo de ‘O Aleph’, transformei em contos como o ‘Gálea e Bronze’ e ‘Amedeo’. Dos enigmas de ‘O Mestre e Margarida’ escrevi ‘Factóides da Devastação’ e ‘Festival de Inverno’. Enquanto lia o capítulo vinte e três de ‘Kafka à Beira-mar’, escrevi ‘Trauma’. Fracassadas tentativas de entender os significados dos sonhos suscitados pelos três livros. Na semana passada, baixei em e-Book ‘A Interpretação dos Sonhos’ e ‘O Futuro de uma Ilusão’, pra ver se ajuda. Tenho no máximo algumas pistas esparsas, nada inteiramente decifrado. A vida nos confronta com alguns mistérios insondáveis, contudo, ainda não sinto emergência em desvendá-los. A jornada importa mais que o destino.

Texto – Jadson André

Imagem – Mr. Kawamura

Previous ArticleNext Article

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Escala de Baumé 0 4830

Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Chegada 0 6368

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, prepare a casa
e meu coração pulou afora
bateu amor por toda a cidade

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Ela está vindo!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, mas levo ainda um pouquinho
e antes de te ter em meus braços
já tenho em todos os sonhos do mundo

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Minha menina vai chegar!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, já não falta mais tanto
e prevendo as noites com você,
me vejo em claro sonhando

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Vou ser pai